domingo, 30 de novembro de 2008

Mais Um

Publicando contos outro site, uma revista bem interessante.
Passa por lá também.
http://www.3ammagazine.com/brasil/index/fiction


Seco


Era assim, um universo seco. Os caminhos feitos de pequenas linhas se encontravam com outros caminhos, se bifurcavam e se uniam, como um mapa desenhado em couro velho, uma coisa meio passada. Lembrava um pouco a textura dos documentos antigos, a cor amarelada, as ranhuras minúsculas, os pontinhos de mofo parecendo poros abertos, muito abertos.

Através da lente de aumento observo o tal solo seco. Nenhuma vegetação. A devastação não é só provocada pela falta da benção da hidratação – santa água que tudo lava e tudo salva. É aquele tipo de devastação que resulta da passagem do tempo – o oráculo implacável - que vem com o castigo do sol e do vento, pelo açoite da areia, e, quase certo, pelo acréscimo generoso de uma boa dose de decepções, sofrimentos e agressões cotidianas.

Embora seco, crestado, gretado, meio sem vida, o solo conta uma história. Ignorar a sensação de desolamento é impossível. Dá assim uma tristeza meio distante, uma saudade que não sei bem de onde, nem do quê. Nostalgia. Banzo. Como se, além de seco fosse deserto, quente, rascante e...longe. É como olhar para mim mesma, lá atrás.

Sou agora a grande exploradora. Procuro tesouros enterrados no solo seco. Segredos de tumbas, grandes revelações, um corpo mumificado, um livro amaldiçoado, um poço dos desejos oculto na paisagem, jóias talvez.

E embora seja divertida a brincadeira de explorar, caio na real. O tempo de agora me chama. Preciso me apressar. Acendo aquela maldita lâmpada fluorescente que amplia as imperfeições e concluo que pele seca é uma merda. É duro ser mulher numa segunda-feira de manhã.



sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Quero Ser Marla Singer


Publiquei isso em outro blog, tempos atrás, em que escrevia sob pseudônimo. Hoje, relendo, me pareceu tão... 'de agora' que resolvi trazer para cá.
...
Branca quase azul, rouba calças das lavanderias automáticas para vender nos brechós, onde também compra suas roupas (de preferência vestidos de festa). Vive de refeições que o serviço social entrega para pessoas que já morreram, mora num hotel pulguento. Tem lábios grossos (“lábios de sofá italiano de couro preto”) sempre pintados de vermelho, o cabelo é artisticamente desalinhado, usa um risco de lápis muito preto nos olhos, quer morrer mas não consegue, come o Tyler Durden (Brad Pitt), tem um caso com o Narrador (Ed Norton) e diz coisas assim:
- Os funerais não são nada perto disto. São cerimônias abstratas. Só aqui tem-se a verdadeira sensação da morte.
- Não tenha medo. Ele não vai te comer (para T. Durden, referindo-se ao vibrador de plástico pink sobre a cômoda).
- A camisinha é o sapatinho de cristal da nossa geração. Você calça quando conhece uma pessoa, dança a noite toda e depois joga fora. A camisinha, não a pessoa.
Definitivamente, quero ser Marla Singer.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

???




Por quantos dias é possível levar a vida no piloto-automático?
Quanta dor alguém é capaz de suportar?
Por que caralhos insistem em dizer que você é especial se não há ninguém para dividir a cama?
Por quantos meses você tentaria iludir a solidão só com o som da TV ligada constantemente servindo de trilha sonora dos dias e noites inúteis?
Para onde se vai quando não há para onde ir?
O que acontece com seus livros e CDs quando você deixa de existir?
Qual é a idade da minha alma?
Eu não sei voar.

sábado, 15 de novembro de 2008


Numa certa viagem, descobri que há um enorme deserto no Brasil. Uma parte deste deserto está agora dentro de mim.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Variações do medo na etnia humana


A covardia produz diversos tipos de indivíduos. Todos seqüelados, claro, mas não necessariamente da mesma espécie.
Há o covarde evidente, aquele a quem você identifica durante a primeira troca de frases. Este, ao menos é, de certa forma, honesto. Há o covarde heróico, que faz de tudo para ocultar sua deficiência de caráter em prol de outras prioridades, como a vida social, por exemplo. Há o covarde festivo, simpático, até. Diverte-se com sua condição e faz disso motivo para riso, conseguindo, assim, ser aceito pelo grupo de modo geral.
E há o pior de todos: o covarde corajoso. Este, sim, desprezível. É pernicioso, pois na ânsia de parecer audaz, ilude, promete, mente. Não tenho certeza que não acredite, ele mesmo, em suas ‘qualidades’ propaladas, e as faz tão reais que você é capaz de abraçar suas causas. Este tipo fala bem, é convincente, tão sólido que ao ouvi-lo você é capaz de uma espécie de conversão instantânea. O covarde corajoso se torna sua religião, seu motivo de transe. Não há nada que ele peça que você não faça, não há nada que ele diga que você não abone, não há nada que você não esteja disposto a fazer por ele. Você é capaz até mesmo de sentir-se um ser miserável, assumindo culpas e sofrendo por elas, só para poupá-lo de aborrecimentos. Até que chega o momento de uma ação verdadeira. O momento em que é preciso polir a armadura, em que um ato de coragem se faz necessário. Bem, aí não conte com ele. Você olhará para o lado e só encontrará as convicções que acompanhavam sua devoção, já um pouco murchas, sem cor. Como um avestruz assombrado pelo medo das próprias mentiras, ele esconderá a cabeça num grande e nebuloso buraco. Que por lá permaneça.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Dando a cara pra bater


Volta e meia, me aventuro. Quase sempre me dou mal, tomo tombo, me arrebento. Mas sempre tento, e sempre mais, e sempre muito. Por isso escrevo. Eu, contista, me aventurei pelo mundo dos textos maiores. Saiu um romance. Atende pelo nome de NÓS SEM VOCÊ. Publico aqui o primeiro capítulo apresentando o personagem ELA, prova da minha falta total de senso de preservação. Como diria uma amiga, "pular no abismo feito uma vaca kamikaze"... Segue o texto, logo abaixo.

...


SOBRE ELA - I

Não sei como defini-la, descrevê-la. Nem preciso. Minha função aqui é outra. Sou o narrador, o escriba. Só relato fatos. Não sou a voz de ninguém. Apenas testemunhei como quem assiste a um filme banal numa madrugada insone. Mesmo assim, acho que vale contar. É uma espécie de histórico, de diário. Aconteceu com ela. Poderia ter acontecido com você.

Ela vive como todos, não vou situar nem tempo, nem espaço. Pense o que quiser. Imagine. É um lugar qualquer do planeta, um lugar em que qualquer um de nós poderia estar. Simples assim. Leva a vida, faz o que faz, o que gosta, o que precisa. Trabalho, família, amigos, essas coisas. Tem vontades secretas que sublimou, vontades novas que brotam sem aviso, realiza pequenos desejos, esquece de outros tantos. Ouve música aos quilos, lê às toneladas, vê mais filmes do que a população total de algumas cidades pequenas, mas não gosta dessa coisa esnobe de falar só sobre cultura. Odeia gente assim. O pessoal “papo cabeça” em tempo integral. “Tem hora pra tudo” - costuma pensar - embora não tolere manifestações explícitas de burrice crônica. Adora falar bobagens, rir das bobagens que ouve. É dona de um humor rascante, beirando o sarcasmo. Não é qualquer um que percebe onde termina a piada, onde começa o insulto. Limite sutil que ela cruza sempre que pode, ou quando não percebe. Por isso faz amigos com a mesma facilidade com que coleciona inimigos. Chamarei de antipatias, que soa menos dramático (mesmo que ela afirme que seres do gênero feminino possuam grande vocação para o drama, assim como as drag queens).

Não acredita em morte natural. Segundo ela, pessoas vão se envenenando aos poucos. Não com remédios, poluição, péssimos hábitos, comida industrial, doenças, metais pesados, agrotóxicos, drogas, álcool e cigarros, mas delas mesmas. Vão envenenando umas às outras até o limite do suportável e, então, simplesmente morrem. Logo, ninguém, em tempo nenhum, morreu, morre ou morrerá de forma natural. Todos assassinam uns aos outros. É o que ela acha.

Gostaria de encontrar alguma coisa. Não sabe o quê. Talvez um prato fundo, bem cheio de uma substância qualquer que mate todas as suas fomes constantes. Que fomes são? Pergunte a ela, se um dia puder. Eu não sei. Eventualmente faz como um personagem de Virginia Woolf: mantém os olhos abertos para preencher cérebro ao limite máximo. O mais próximo que consegue chegar da saciedade, da sensação de plenitude. Fugaz! Dura apenas alguns segundos.

Depois de muito pensar sobre o que tinha feito da vida, resolveu mudar o rumo da estrada. Pega um desvio. Quer literatura. Quer multiplicar, trocar, falar sobre autores, citações, biografias. Precisa de interlocutores, de desafios, de personagens. Quer que a questionem, que a instiguem, que a ameaça chegue perto, uma lâmina rápida passando à distância de um fio de cabelo. De que vale conversar com gente que só concorda? Duvida um pouco que a humanidade, no estado em que se encontra, possa fornecer esse tipo de indivíduo. Mesmo assim nutre esperanças. Quem sabe?

É tarefa complexa entender suas preferências literárias ou musicais. Trata-se de um ser mutante, moldável, mas não propriamente adaptável. Precisa ser convencida. Prefere observar os ambientes e absorver por osmose somente o que interessa. Caso contrário, a guinada precisa ser radical, o impacto grande, para sacudi-la, arrancá-la do marasmo. Depois da queda, o coice! Se não for assim, desaba no buraco escuro e cinza do tédio, e ali se acomoda, permanece.

Não é resistente à tecnologia. Mas não morre de paixão por computadores, mensagens eletrônicas e parafernálias em geral, embora não viva sem algo que produza som em cada ambiente da casa, um celular (mais para mensagens do que para conversas), e um bom forno de microondas. Ama a música e, portanto, ama CDs e outras mídias. Telas, teclas e botões são mortos para ela. Chatice necessária. Por força do ofício usa computadores diariamente, por muitas e muitas horas. Possui o ímpeto dos descobridores, o que a faz uma mulher curiosa, aprendiz eterna. Por isso conectou-se ao mundo pelos milhões de artifícios internéticos, links, blogs, espaços virtuais, e-mails, outlooks. Essa porcaria toda. Usa tudo como os índios americanos fariam com sinais de fumaça, ou a resistência francesa com os pombos-correio.

É uma necessidade vital para esta mulher estar ligada aos amigos. Por conta disso entrou, meio contra a vontade, em um desses nichos, tipo clube virtual. A curiosidade matou o gato! Um impulso a leva a fuçar em tudo, vasculhar até chegar o mais próximo possível de um conceito de compreensão, apropriação. Acabou encontrando um lugar para falar sobre música, cinema e literatura.

E foi assim que começou.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Ódio


Odeio. Assim, simples, no presente do indicativo. Mas não odeio de um jeito nobre, como aquilo que chamamos de ódio construtivo, que geralmente acompanha uma bofetada da vida, do sofrimento, e nos faz reagir. O ódio com saldo positivo, se é que pode haver algo assim. O meu ódio acontece em estado bruto, duro e frio como uma rocha, cristalizado, empedernido. Ódio cego. Camadas e camadas acumuladas, como que guardando fósseis no ponto mais profundo e mais escondido da terra que há em mim. Não tenho a menor pretensão de pertencer ao grupo dos que odeiam em segredo, civilizadamente, ou dos usam o ódio como um foguete propulsor. Não, nada disso. Sou humana, vil, mesquinha e sofro. Sofro muito com as dores que me cabem e com as que me imponho. Xingo, grito, acho injusto e choro. E, é claro, odeio com todas as forças, como deve ser, sem objetivo, sem buscar a cura.


É claro que minha vida não se resume a isso, mas, no momento, mudar o foco da conversa para coisas agradáveis seria mais ou menos como depositar flores mortas sobre a carne viva. Completamente sem propósito. Não há motivo para misturar as coisas. Tudo em seu lugar e a seu tempo.


E sinto ódio quando acordo e me dou conta de que sei desde sempre que o fim do caminho é a morte. Que já se passou a metade da minha vida e que nunca serei a mulher que visita as pirâmides, que se aventura, que domina cinco idiomas, que conhece a poesia e a prosa do mundo. Jamais dançarei bem como gostaria. Nunca darei a volta ao mundo, ou mesmo farei um cruzeiro num grande veleiro branco. Nunca terei amantes misteriosos, não escreverei livros de sucesso, não aprenderei a tocar piano, não criarei cavalos, não morarei numa grande casa com sombra de árvores fartas e convidativas no jardim. Não passarei tardes olhando para o mar da Grécia. Não terei os músculos da Madonna. Não pintarei telas em azul e ocre. Não conhecerei a glória de me apaixonar mais dez vezes, não nadarei com golfinhos, não serei a luz da vida e a razão dos dias de mais ninguém, não arrebatarei de nenhuma outra o homem que tanto amo. Minha existência é comum e será assim até o final. É o meu papel, o que me coube na comédia.


Em dias assim é inútil querer encontrar o lado bom de qualquer coisa. Certamente estará chovendo, e o melhor é espiar pela janela com um olhar vazio, tomar um chá quente e voltar para a cama. Em dias de ódio cego, bruto e visceral, é de bom tom poupar o mundo da nossa constrangedora presença.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Capricórnio com Ascendente em Câncer


Algumas coisas me arrependo de ter dito. Outras, me arrependo de não ter feito. Acho que a vida é assim. Estou aqui, no táxi amarelo, e entre um e outro pensamento que foge pela janela junto com a paisagem – passa, passa, tudo passa - abro a bolsa de grife com um monte de coisas dentro. Encontro o que preciso para retocar o batom com aquela postura de quem tem controle. Aprendi faz tempo a aparentar controle. Não significa que tenho. Não mesmo. Lembro-me do filme que vi. Acho que era Tomates Verdes Fritos. A personagem, gorda, triste e patética, diz que é tarde demais para ser jovem e cedo demais para ser velha. Acho que era mais ou menos assim. Pode não ser. Mas entendo.

Enquanto o carro segue, sonho em ser assim, desconhecida, inconstante, não precisar parecer, não precisar não-ser. Inventar a própria personagem todos os dias é uma carga pesada. Até para mim, que carrego milhões de pequenas coisas nessa bolsa.

Na avenida grande, enquanto o táxi segue, vou repassando as minhas diversas mulheres, uma espécie de catálogo esquizofrênico de “eus” interiores, como quem deixa correr um fio da meia de nylon. Em minha sala de não-estar estão os objetos que tanto prezo. Arte, dizem os amigos. Gosto de arte sim. Sou moderna. E gostar de arte é culto. Quase necessário. O que diriam, afinal, os que me conhecem e os que me criticam? Mas uma daquelas que me habita gosta também de gravuras baratas com as figuras de Jesus e Maria com o coração em sangue, ou daquela menininha "kitsch" com cachos dourados segurando flores de plástico. Essa mulher estranha nutre predileção por bonequinhas de porcelana e jarras em formato de abacaxi, cabelos amarelos de descolorante, unhas e lábios bem vermelhos. O gosto é dela e não está em discussão. Susto. O táxi faz uma curva que acorda. Acorda? Mas não era sonho. Nem delírio.

A buzina me chama para o mundo do aqui e agora. Indo, indo, indo. E eu vou. Como no ano passado, como em tantos outros. A mesa estará posta, as crianças mais crescidas. Como você está bem! Não mudou nada! Mudamos. Todos mudamos. Mais amargos, mais felizes, mais velhos, mais prósperos, menos pacientes. Haverá a discussão por quem corta o peru, as piadinhas de sempre. Os risos, também de sempre. As animosidades corriqueiras. E eu indo. Me deixando levar como as algas mortas nas ondas. Se a imagem invocasse uma ostra, pelo menos poderia me grudar a algum rochedo ocasional. Não seguir em frente. Parar. Mas alga não adere a nada. Acompanha o movimento. Só vai.

A avenida se bifurca. O táxi, agora, contorna o parque em direção ao túnel. Minha cabeça também está assim. Eu me bifurco e entro no túnel. A luz aparece longe ainda. Quando o carro vence o túnel, a frase sai de uma boca que não parece articular nada:

Pára um pouco que eu vou descer.

Ar. Muito ar. Respiro muito. Fundo. Embora seja dezembro tropical, o ar é fresco. Desenha um caminho das narinas aos pulmões. Pensamentos mais claros. Observo a paisagem. Rimbaud escreveu que a eternidade é o mar encontrando o céu. Algo assim. Eu concordo. Com a alma encharcada de uma esperança pífia entro de novo no táxi.

- Segue.

A ordem é seca. A voz tem um pouco de angústia. Um fundo molhado. Meus olhos também. O motorista não sorri. Eu não sorrio. Sigo.

Táxi não é lugar para crise existencial em véspera de festa anual do clã familiar. Que coisa mais sem glamour. Não tenho tempo agora para filme que passa na cabeça expondo as claustrofobias que moram em mim e nas minhas muitas personagens. As misérias e glórias das muitas que me habitam. A mim e a tantas outras. Brigam por espaço, se acotovelando, querendo emergir. Nunca chegam a um acordo. Nunca sou plena. Sou muitas. É sina. Vou continuar sendo. O amigo astrólogo, conhecedor da alma humana, jornalista e escritor sazonal diz que a culpa é do mapa astral. Sabe como é: capricórnio com ascendente em câncer. Antagonistas. Um contrapõe o outro. Um completa o outro.

Seja lá como for, dou uma ajeitada nos cabelos curtos. Confiro o rosto no espelho. Nenhum sinal de dúvida. Nada me desfigura. Impassível. Egípcia. Pago a corrida de táxi. O motorista rumina um agradecimento. Eu desembarco. Aliso a roupa. Respiro mais uma vez a brisa fresca e me dirijo calma, segura, para a entrada do prédio e para a festa que me espera. Ano que vem não. Mas agora vou. Sorrio e vou.



sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Iluminura



Ele me sabe. Me conhece. Me decifra. Sabe que pode andar entre tudo o que há de mais incerto em mim. Sabe dos meus dias de espera, das minhas noites insones. Sabe que meu amor é feito de fogo e incenso, que arde, mas não destrói. Sabe que tenho inúmeras portas trancadas, mas tem a chave para abrir a cada uma delas.
Me conhece porque vê além dos meus olhos; vê com meus olhos. Percebe que cada gesto significa um outro gesto, guarda ou revela, mostra ou insinua. Conhece o real sentido dos meus sentidos. Conhece as pequenas e grandes reações que cada toque seu, cada palavra sua podem desencadear. Passeia soberano pelos abismos e pelas planícies de mim. Abre minhas janelas para que entre a luz.
Me decifra porque me lê com o cuidado de um arqueólogo que dedica a vida a compreender os sinais que encontra na cidade perdida que sempre procurou. Me lê como a um livro revelador, buscando suas respostas em cada pequeno traço deixado no papel em que me imprimo. Porque possui todos os códigos que me acessam.
Me sabe porque sabe a si mesmo. Porque sou como ele. Porque sou ele. Porque somos nós.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Fada dos Dentes


Eles estão lá enfileirados. Todos um ao lado do outro. Na luz da web, aquela configuração ameaça, chega a causar incômodo. Não que provoquem náusea ou coisa parecida. Bem pelo contrário. São de um brilho estranho, um formato único, que seduz e amedronta, tão estranhos que me fazem perguntar por que caralho, afinal de contas, não são todos assim.

E eu, olhando as formas brilhando na lente, esqueço que tudo tem uma moldura. Em volta daqueles dentes há toda uma pessoa, uma boca que beija e fala comigo, uma cabeça que pensa, cabelos, mãos (de que gosto especialmente), um cérebro, e todos os acessórios que costumam vir no pacote dos seres humanos completos.

Vira uma espécie de obsessão instantânea. Quero aquela pessoa. Quero aquele sorriso. Quero a língua em mim, e a boca que a contém. Quero a imagem dos dentes, um frame perfeito congelado no tempo. Alguma coisa que eu possa guardar para sempre. Nunca vi nada tão lindo!

E não falo dessa beleza de revista, de expor as carnes como num açougue para ver qual peça de picanha ou filé nos aguça o paladar. Falo daquela beleza subjetiva, de uma espécie de revelação que acontece, mas que a gente não consegue explicar, dimensionar, sei lá.

Fico imaginando um jeito de capturar esses dentes. Arrancar um a um como fez o louco do conto de Poe com a pobre Berenice? Nem pensar! Trágico demais. Pedir para tirar um molde e confeccionar um modelo em gesso, um souvenir? Frio demais. Não me deixaria feliz.

Então, para ter os dentes, só há uma maneira viável. É preciso que todo o resto acompanhe o conjunto de pedaços brancos que me fascinam. Isso implica ter a boca, os olhos, os cabelos, o pau, os pés, e eu não quero. Mas agora, aqui, em total quietude na noite escura, só quero que crave os dentes com calma, fundo, em meu pescoço. Só quero os dentes, os dentes, os dentes.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Fome


Santos tinham visões porque jejuavam. Nada de divino, poderoso, extraordinário. Pura e simples inanição. Falta de nutrientes, hipoglicemia. Dias e dias sem comer resultavam em miragens, algo como sonhar colorido de olhos bem abertos. Os profetas tinham revelações da fome. Ela sentou-se à janela olhando o azul bruto do céu e perguntou a ninguém se outras fomes poderiam provocar alucinações. Períodos longos de privações afetivas produziriam algum tipo de ilusão sensorial? Anos de sexo sem orgasmo fariam que tipo de efeito psicodélico surgir de repente, do nada? Não sabia. Intuía que coisas nela haviam mudado, acontecido. Sabia por que tinha tido visões. Na primeira vez, achou que fosse apenas um desmaio seguido de um estranho sonho desconexo. Nas outras três, houve apenas o medo, seguido de uma inexplicável calma interior. Pensava se estaria louca, insana, alguma coisa embolorando dentro do cérebro. Não! Suas capacidades respondiam perfeitamente às necessidades. Tudo normal. A mutação ocorrera, era fato. Porém, nada de externo a denunciava como diferente. Nada mostrava ao mundo ser ela a nova profetisa do grande vazio, mártir caótica sem inquisição, santa sem hordas em procissão ou prece. Sabia só que tinha um propósito, uma missão. Sem cultos, templos, nem fiéis. Apenas uma tarefa a cumprir em gratidão ao dom recebido. A quem servia? Isso ela não sabia. Talvez a nada, a ninguém. Mesmo assim, seguia em frente no que se tornara o trabalho da sua vida. Tarefa solitária, lenta, desalentadora, mas dela. Voltou a cabeça quando percebeu que o som da água que caía do chuveiro havia cessado. A porta se abriu e viu que ele surgia sorridente no quarto, vindo do banheiro. Ela também sorriu. Ele abraçou-a. Ela o beijou com enorme doçura e se abriu para recebê-lo em sua vagina repleta de novos e afiados dentes.

sábado, 30 de agosto de 2008

Leitura


(para B.)


Eu leio. Leio livros, revistas, frases, palavras, letras. Leio rostos, mãos, olhos. Leio setas, pistas, sinais. Leio códigos, cifras. Leio cartas, mensagens, telegramas, bilhetes. Leio filmes, músicas. Leio prédios, ruas, casas, carros. Leio texturas, cores, cheiros, sabores. Leio árvores, grama, terra. Leio corpo, tato, sexo. Leio areia, mar, conchas. Leio cenas, ocasiões, acontecimentos. Leio estradas, caminhos, veredas. Leio o mundo para que você se leia em mim.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Coma


Estado de torpor emocional, de embotamento profundo, de ilusão de movimento. Como sonhar com o balançar dos barcos, mas jamais ter ganhado as ondas. É assim que vive a maioria dos não-sei-quantos-milhões de humanos do planeta. Alegrias médias, gozo transitório, intelecto satisfatório, felicidade homeopática. Mais ou menos como deixar de ir a uma ótima festa por medo da ressaca.
Passam a vida cultuando gênios que não compreendem. As grandes sinfonias, os grandes filósofos, os melhores livros, a efervescência dos mártires. Os comatosos afetivos querem sorver dessa taça com uma sede ancestral, mas não alcançam, não chegam jamais perto o suficiente para o primeiro gole.
Graça suprema é sair deste sono de vida pantanosa pela força de um grande choque, uma grande descarga elétrica que não nos mata. Nos desperta, nos acorda e nos liga a todas as verdades. Depois do choque, você passa a ouvir a nota de violino escondida na sinfonia, percebe a sutil escolha das palavras do poeta, revela a paleta insana do gênio das tintas.
Ah, mas tudo isso não é fácil. É preciso primeiro conhecer o coma, ter vivido nele, com ele, por ele, e ter, por um longo período, acreditado ser isso a vida. Se, e somente se, você tiver a sorte de encontrar quem te desperte, quem detone a bomba que te acorda, é preciso que seja esperto para reconhecer os sinais do agente catalisador. Depois, ainda, terá que ter coragem para resistir aos outros comatosos, aos que querem que você continue em seu estado de afeto vegetativo. Coragem para repudiar à semi-vida.
Só então o coma acaba, as cores aparecem, e o mundo nunca mais será o mesmo.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Os Duplos



Insônia outra vez. Dicotomias eternas. Dormir ou ficar acordada? Perverter a regra do sono parece o primeiro passo para perverter todo o resto.

Na ausência do conforto escuro, a cabeça se preenche de idéias, pensamentos. E todos com um traço comum, um fenômeno interessante: duplas possibilidades, duas alternativas. Nunca vários, sempre aos pares. Pensamentos dicotômicos.

Falar ou não falar? Definitivamente, no meu caso, escrever. Mas, se falasse o que sinto, o que realmente desejo, seria interpretada da forma certa ou teria como resposta teus movimentos de ostra? E, se falo, que faço com seus silêncios infinitos de dois dias, o seu fechar-se para refratar?

O caminho leva, claro, a outra dicotomia. Os sinais que vêm de você e me confundem. Que ora me atraem, ora repelem. São acenos de aceitação, um abrir de braços para que ali eu me encaixe, me molde, me perca e me encontre? Ou são reflexos de alguma coisa que não compreendo, respostas do que você vê em mim, dos segredos que existem em você, possibilidade do que é delicioso manter, mas jamais consumar?

E então, mais uma bifurcação: te ver ou não te ver? Para mim, um desejo claro e latente. Não há outra possibilidade de tornar real o que já é lírico só quando imaginado, quando desenhado a fundo na minha existência diária. Mas há duas pontas neste laço e para que se ate, a outra ponta precisa fazer um movimento em minha direção. Enquanto isso, permaneço fio solto, ao vento do acaso e das suas vontades de me admitir em seu mundo ou me congelar no meu.

Existo ou não existo? Onde você acomoda a minha imagem? No plano real, onde devo assumir a forma de uma possibilidade concreta a ser conferida. Ou como uma dúvida, uma vontade distante, um plano interessante, mas de difícil e intricada realização?

Saber ou não saber? Abro meu mundo, meu espaço, meus pensamentos e te dou o saber de mim. E eu, o que sei? Quase nada. Sei que você planeja, desconfio que tema, sei que às vezes sofre. Dos motivos, não sei nada. Intuo por querer saber. Mas sou mais sua do que você é meu.

O caminho tortuoso que me trouxe aqui se duplica mais uma vez. Se você não vem em minha direção, por que não ir até você? Simples. Mais uma dicotomia. Talvez o meu desejo não seja a sua vontade.

E então, a última e mais difícil parte da estrada que novamente se divide: seguir em frente, tomar o atalho que me leva a você? Pegar o desvio que me afasta? A dor e a alegria intuídas seriam ampliadas se fossem, finalmente, possíveis? Olho as placas na noite iluminada da ausência do meu sono e concluo que esta é uma decisão que só se pode tomar aos pares.

domingo, 22 de junho de 2008

Foi bom pra você?



Sexo. Primeiro, pensou bem na palavra, assim, inteira, piscando em néon azul. Depois, separou as letras, todas maiúsculas, e percorreu cada uma delas. Um exercício de imaginação e memória quase doentio. O contorno exercendo um fascínio, impedindo-a de piscar os olhos.
Primeiro o S. Sinuoso, sutil, serpente. Como os movimentos, que tanto desejava que fossem refletidos num espelho de vidro, ou no espelho de carne do parceiro de uma boa foda ocasional.
Depois, o E, evocando uma posição confusa, mas atraente. Uma das tantas posições que imaginava e não sabia se alguém já tinha ou não tentado. Seguiu, então, parao X. Ah, o X!!! Sempre trazia algo proibido, pernas torcidas, olhos vendados, a imagem de alguém com membros bem abertos, separados, mãos e pés amarrados às guardas da cama. Sim, o X era uma letra transgressora.
Finalmente, o O. Como uma boca redonda se fechando suavemente sobre um grande, brilhante e suculento membro ereto. A cabeça subindo e descendo lentamente sobre o pênis, terminando naquele O perfeito, muscular, com pequenos dentes brancos apenas insinuados.
Pensava em tudo isso enquanto suportava por não sei quantas vezes a trepada sem graça, sem imaginação. O papai-e-mamãe pouco criativo de um marido bonito, porém egoísta e tacanho, pensando somente no próprio prazer, se recusando a ousar. “Coisa de vadia”, afirmava ele, sempre que uma vontade secreta era mencionada. Continuou pensando nas letras brilhantes, em cordas, algemas, correntes, vibradores, cera líquida de velas ardentes, enquanto cravava lentamente o punhal que usava para abrir a correspondência nas costas de seu parceiro de sexo e casamento.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Capítulo III – Versículo I – Evangelho Feminino Profano


Fêmeas são dramáticas, e, em meio à imensa confusão mental, amadurecem. Finalmente, estão maduras e malucas o suficiente para perder as estribeiras, e precisam retomar o pé no mar onde estão mergulhadas. Desistem de achar um culpado, de tentar encontrar quem afinal colocou cada uma delas ali, naquela ilha cercada de estranhos por todos os lados. Lost. Não se enquadram, não se encaixam. Então, criam, improvisam. É preciso reinventar. O destino feminino foi biologicamente condenado e aprisionado ao mundo cosmético artificial, um arsenal de química importada. Na dúvida, é melhor lavar o rosto com água e sabonete de glicerina. Isso não muda o DNA.
Um dia ela desperta e não reconhece a própria voz. Fala em um idioma que ninguém compreende. As da sua espécie estão ocupadas com filhos e supermercado. Os do gênero oposto (ou complementar) procuram uma fêmea apta para acasalamento, mais jovem, mais firme, menos complicada, menos inteligente. E você lá, olhando aquilo tudo. Não dá pra simplesmente jogar o cérebro fora. Em algum momento do caminho esqueceu o que amou. Lembra vagamente, mas não consegue ver. É nebuloso. Sabe que viveu, que viu, que acreditou, mas é tão distante que esqueceu. Não suporta mais situações intrusas, constrangedoras e receia que uma agressividade mal domada provoque atitudes extremas, das quais sempre se arrepende. Como, por exemplo, dar um bofetão sonoro na atendente de loja que a chama de “meu bem”. Precisa recorrer a apoios externos para agir com segurança, ou tomar um antidepressivo, quem sabe!
É esquizofrenia pura de viver algo irreal, presença de amizades mornas, laços inexistentes. A natureza calada durante séculos desperta de algum lugar e grita: ACORDA OU SE MATA DE UMA VEZ! Ela acorda, e quer se eternizar. A convivência com tudo o que é habitual se torna um exercício árduo. Ela passa a temer a chegada de cada aniversário, não pela passagem do tempo (se acostumou a isso), mas por ter que repetir aquela velha e boa conversa por milênios inteiros.
Então, escava uma fresta de alguma maneira e a vida traz personagens novos. Opera-se o milagre. Não se sabe bem como, esses novos personagens compreendem seus sentimentos fora de ordem, suas idéias desalinhadas, e mesmo assim querem estar com ela. Ela é diferente. Eles sabem e não se importam. Entendem seus temores, ou pelo menos convivem com eles, e sabem que suas agressões surgem só para se defender. Ela sabe que a diferença é um atrativo. Para os novos personagens, uma espécie de deslumbramento. Para ela, uma resistência encantada, emotiva. Sabe que a experiência lhe dá uma aura qualquer (não pode explicar) e que seu raciocínio meio masculino é fascinante. Lembra da mãe, que lhe dizia que quem pensa muito desencapa os neurônios e envelhece neurótica. Não quer dramas. Quer ficar feliz. No meio do mar de merda estão os novos amigos. Entre os novos amigos, aquele que tem o poder de fazê-la sossegar. Compreende, entende, conhece os seus códigos e se comunica com ela. Sua cabeça gira rápido demais. Não existe um motivo real. Está mesmerizada pelo novo amigo, quer sugar como um vampiro genético o benefício da luz. Não tem medo. Apenas acha brilhante que alguém tão jovem possa conhecer tanto quanto ela algumas coisas que acontecem no mundo real, e não no estúdio com cenário de fundo pintado em que vive. Sabe que sua curiosidade vai chegar aos limites do intolerável e que precisa seguir, se apropriar, tomar. Mas, na verdade, quer trocar, sucumbir, quer que também tomem espaço em sua vida. É preciso que se certifique que não há confusão alguma. O sentimento nada tem a ver com isso, mas não pode mais viver sem a sensação da presença nova. É como uma droga. Ele detonou o botão de acesso a um repertório de memória, abre o arquivo de repente e vem com uma força tão grande que pode ser que em algum momento ela erre, ela force, ela perca. O preço é alto, mas o diagnóstico é urgente. E ela deita de lado, se encolhe e recita um antigo poema, rezando para que o susto seja menor do que a descoberta e que tudo fique assim como está.

domingo, 8 de junho de 2008

Da Vergonha


Vergonha é um sentimento engraçado. É um sentimento? Definir de que jeito? Pra mim e para toda a população do planeta é completamente familiar, mas a definição que podemos dar à vergonha é relativa. O que causa vergonha em alguns pode ser motivo de orgulho para outros. A vergonha dos velhos é diferente da das crianças. A dos homens, diferente da das mulheres. A das mulheres, diferente para cada idade, cada fase. E para cada mulher cabe a sua cota particular de vergonhas inexplicáveis e totalmente personalizadas. Vergonhas com grife própria.
Há as que não usam calças jeans por vergonha da bunda. As que não dançam em festas por vergonha de parecer garças desajeitadas tentando sair da lama. As que nunca, jamais, em hipótese alguma deixam que as vejam desmazeladas. Outras não têm o menor problema com isso, desde que estejam com um risco de lápis preto nos olhos e calcinhas limpas. São tantas, tão diversas, tão infinitas, tão íntimas e tão sutis as tais vergonhas que seria impossível falar de todas. Talvez até das minhas próprias. Quanto tempo levaria para enumerar minhas vergonhas? Não me refiro somente às físicas, aquelas que estão no corpo, que podem ser ou não reais. Me preocupam e intrigam mais aquelas outras, que nos corroem por dentro, como se o cérebro fosse invadido de vez em quando por uma dose generosa e corrosiva de ácido de bateria.
O mais insólito, na verdade, é o modo prosaico que me levou a pensar no tema. Comecei minha reflexão sobre as diversas vergonhas estendendo roupas no varal. Por um caminho intrincado que não saberia descrever em detalhes (o labirinto, o Minotauro, as migalhas de pão de João e Maria, Penélope que desmancha durante a noite o bordado que faz de dia...) cheguei à conclusão de que algumas mulheres não têm o menor pudor em chupar o pau de um estranho, mas morrem de vergonha de pendurar no varal panos de pratos surrados e velhos.
É uma lógica estranha, mas faz sentido. Afinal, não há orgulho nenhum em exibir, como bandeiras desfraldadas ao vento para todos os que quiserem admirar, o testemunho das pequenas misérias diárias dos trabalhos domésticos a que se submetem as donas daqueles trapos, que saem maravilhosas e poderosas, cabelo impecável, saltos, maquiagem, trabalham fora, conquistam o mundo, mas que revelam a mortalidade simples de lavar a louça e limpar o fogão. É um sentimento ancestral de vergonha que eu reconheço, compactuo e compartilho. Amanhã vou sair, linda e arrumada, para comprar novos panos de pratos.

Não cometo poemas.
A explicação é desnecessária.
Mas, de vez em quando
As letras fogem e se amontoam
Num grupo esquisito,
Uma espécie de ninho de aranhas.
Parece um poema.
Para mim, é um conto anêmico.