sábado, 30 de agosto de 2008

Leitura


(para B.)


Eu leio. Leio livros, revistas, frases, palavras, letras. Leio rostos, mãos, olhos. Leio setas, pistas, sinais. Leio códigos, cifras. Leio cartas, mensagens, telegramas, bilhetes. Leio filmes, músicas. Leio prédios, ruas, casas, carros. Leio texturas, cores, cheiros, sabores. Leio árvores, grama, terra. Leio corpo, tato, sexo. Leio areia, mar, conchas. Leio cenas, ocasiões, acontecimentos. Leio estradas, caminhos, veredas. Leio o mundo para que você se leia em mim.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Coma


Estado de torpor emocional, de embotamento profundo, de ilusão de movimento. Como sonhar com o balançar dos barcos, mas jamais ter ganhado as ondas. É assim que vive a maioria dos não-sei-quantos-milhões de humanos do planeta. Alegrias médias, gozo transitório, intelecto satisfatório, felicidade homeopática. Mais ou menos como deixar de ir a uma ótima festa por medo da ressaca.
Passam a vida cultuando gênios que não compreendem. As grandes sinfonias, os grandes filósofos, os melhores livros, a efervescência dos mártires. Os comatosos afetivos querem sorver dessa taça com uma sede ancestral, mas não alcançam, não chegam jamais perto o suficiente para o primeiro gole.
Graça suprema é sair deste sono de vida pantanosa pela força de um grande choque, uma grande descarga elétrica que não nos mata. Nos desperta, nos acorda e nos liga a todas as verdades. Depois do choque, você passa a ouvir a nota de violino escondida na sinfonia, percebe a sutil escolha das palavras do poeta, revela a paleta insana do gênio das tintas.
Ah, mas tudo isso não é fácil. É preciso primeiro conhecer o coma, ter vivido nele, com ele, por ele, e ter, por um longo período, acreditado ser isso a vida. Se, e somente se, você tiver a sorte de encontrar quem te desperte, quem detone a bomba que te acorda, é preciso que seja esperto para reconhecer os sinais do agente catalisador. Depois, ainda, terá que ter coragem para resistir aos outros comatosos, aos que querem que você continue em seu estado de afeto vegetativo. Coragem para repudiar à semi-vida.
Só então o coma acaba, as cores aparecem, e o mundo nunca mais será o mesmo.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Os Duplos



Insônia outra vez. Dicotomias eternas. Dormir ou ficar acordada? Perverter a regra do sono parece o primeiro passo para perverter todo o resto.

Na ausência do conforto escuro, a cabeça se preenche de idéias, pensamentos. E todos com um traço comum, um fenômeno interessante: duplas possibilidades, duas alternativas. Nunca vários, sempre aos pares. Pensamentos dicotômicos.

Falar ou não falar? Definitivamente, no meu caso, escrever. Mas, se falasse o que sinto, o que realmente desejo, seria interpretada da forma certa ou teria como resposta teus movimentos de ostra? E, se falo, que faço com seus silêncios infinitos de dois dias, o seu fechar-se para refratar?

O caminho leva, claro, a outra dicotomia. Os sinais que vêm de você e me confundem. Que ora me atraem, ora repelem. São acenos de aceitação, um abrir de braços para que ali eu me encaixe, me molde, me perca e me encontre? Ou são reflexos de alguma coisa que não compreendo, respostas do que você vê em mim, dos segredos que existem em você, possibilidade do que é delicioso manter, mas jamais consumar?

E então, mais uma bifurcação: te ver ou não te ver? Para mim, um desejo claro e latente. Não há outra possibilidade de tornar real o que já é lírico só quando imaginado, quando desenhado a fundo na minha existência diária. Mas há duas pontas neste laço e para que se ate, a outra ponta precisa fazer um movimento em minha direção. Enquanto isso, permaneço fio solto, ao vento do acaso e das suas vontades de me admitir em seu mundo ou me congelar no meu.

Existo ou não existo? Onde você acomoda a minha imagem? No plano real, onde devo assumir a forma de uma possibilidade concreta a ser conferida. Ou como uma dúvida, uma vontade distante, um plano interessante, mas de difícil e intricada realização?

Saber ou não saber? Abro meu mundo, meu espaço, meus pensamentos e te dou o saber de mim. E eu, o que sei? Quase nada. Sei que você planeja, desconfio que tema, sei que às vezes sofre. Dos motivos, não sei nada. Intuo por querer saber. Mas sou mais sua do que você é meu.

O caminho tortuoso que me trouxe aqui se duplica mais uma vez. Se você não vem em minha direção, por que não ir até você? Simples. Mais uma dicotomia. Talvez o meu desejo não seja a sua vontade.

E então, a última e mais difícil parte da estrada que novamente se divide: seguir em frente, tomar o atalho que me leva a você? Pegar o desvio que me afasta? A dor e a alegria intuídas seriam ampliadas se fossem, finalmente, possíveis? Olho as placas na noite iluminada da ausência do meu sono e concluo que esta é uma decisão que só se pode tomar aos pares.