quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Alice e o Mundo Real


I
Wonderland
“Nunca te deixarei! Não seria capaz de simplesmente 'sair' da tua vida ainda que essa arrogância de achar que sou parte de ti seja redundamente presunçosa (Adoro adjetivos!).”

No Mundo Real
As palavras escritas chegaram aos olhos de Alice como uma espécie de bálsamo. Ela leu e sorriu. A frase era construída de uma maneira peculiar. Aceitou a idéia de se acostumar a ter esta presença nova e intensa em sua vida. Por dentro, também sorriu.

II
Wonderland
“Fiquei tão contente, tão feliz em ver que nossos 'códigos' estão tão bem representados pela tua coleção! Isso foi lindo, meu amor. Eu te amo, mesmo, e nossos símbolos me confortam: lembram o que há de importante em tudo que te digo e tudo que me dizes. Eu fico imaginando você procurando essas imagens, e que isso foi a sua maneira de me ter na tua cabeça.
P.S.:Tua voz ao telefone é uma bênção!”

No Mundo Real
A palavra ‘benção’ escrita ali foi uma revelação para Alice. Ela pensou que finalmente havia encontrado sua porção de sagrado e abraçou aquele amor como um recém-convertido. Seria devotada a este deus desconhecido que chamava de amor absoluto. A partir daquelas palavras seria seguidora fiel, faria todos os sacrifícios e cumpriria todos os ritos que a salvariam de todos os males e toda a mediocridade dos mortais comuns. Sentia-se especial, ungida pelo divino. Mesmo que dentro dela soubesse que os deuses, desde o princípio dos tempos, podiam ser cruéis e fazer com que seus seguidores passassem pelas mais duras provas.
III
Wonderland
“Vem falar comigo? Diz que está aí, mesmo que sejam 5h35min. Provavelmente não. Mesmo assim, eu te amo, Alice. Minha noite foi absurda sem você. Acorda, amor... Acorda! Eu deveria estar aí, mas, por enquanto, me diz que dormiu bem? Vai ser sempre a Alice que tanto amo? Por favor, seja. Nada me faz negar a porra da noite que eu tive sem você. Por que tu não estava lá, meu amor?”

No Mundo Real
Alice acordou em sobressalto. Parecia ouvir a voz que a chamava. Correu para conversar com o homem que amava, mesmo sendo tão cedo. Não via as horas pelo relógio, não contava o tempo assim. Sua vida agora pertencia a uma dimensão diferente. Respirava num outro ritmo, se alimentava de palavras e do resultado delas. Era assim, e havia nisso uma felicidade que não conhecia, não entendia. Uma sensação de abismo, de roda-gigante. Tudo seria diferente se eles assim quisessem.
IV
Wonderland
"À tarde estarei por aqui. Se quiser aparecer... Nem sei se vou sair este final de semana. Lembra que disse que prefiro ficar no nosso mundinho? E se eu alugar filmes só saio daqui na segunda-feira. Mal com tudo. Bem comigo. Não quero pena nem raiva. Nem sei o que quero se não for você...Virei dependente de você, você é minha vida... E agora? Alice, nunca esquece de mim, nunca desista da gente e nunca mais se sinta só depois de mim. Nunca mesmo."

No Mundo Real
As últimas reservas e resistência que haviam, Alice jogou por terra. Era ele, ela sabia. Acreditou em cada letra de cada palavra. Sempre as palavras e o poder que movimentam. Não se sentia mais só. Trazia a sensação de ter alguém com ela, por ela. O mundo tinha novas cores. Ou tinha cores, enfim. Cores que nunca existiram no mundo de Alice. Era, sim, um mundo de maravilhas. Atirou-se no delicioso abismo e sabia que não cairia. Flutuaria devagar até o fundo onde encontraria uma água morna, clara... e nunca mais seria só. O medo estava lá, ela sabia, dormindo em sua caverna, mas resolveu que, por ora, poderia fazer de conta que o dragão do medo não existia.
V
Wonderland
"Cada dia que passo longe de ti é um dia perdido... Tudo aqui está perdendo a importância: a cidade, o trabalho, minha biblioteca, as pessoas do dia-a-dia, a TV sempre ligada... TUDO me parece tão sem propósito que me inspira quase aversão. Não é mais aqui que minha vida está. Um sentimento de inquietação me toma de assalto quase que constantemente e não sei mais, sinceramente, como achar algo para descrever a sensação maravilhosa que é ver que você existe e está aí. Você se tornou o meu vício diário, minha paz e minha guerra, meu inverno e meu verão."

No Mundo Real
Era o céu... Como era delicioso ouvir tudo aquilo. Sabia o gosto daquela boca, a textura daquela pele, conhecia todos os toques, todas as respostas. Era feliz. Amava e era amada. Tinha forças para enfrentar os piores pesadelos e o seu próprio: o medo de ser abandonada, de ficar sozinha, de sofrer outra vez os horrores das noites em claro, da dor sufocante que a fazia sentir-se morta. Alice agora era alegre, cantava, tinha prazer nas pequenas coisas.... e sorria. Um sorriso enigmático, secreto, como o do terrível gato da história.

VI
Wonderland
"Acredite: eu sempre te amei. Só não sabia que existias. E amo cada vez mais. Não se preocupa comigo agora, se sinta feliz. Só isso. A barra está pesada aqui mas eu lembro de você, de nós e tenho certeza de que tudo vai passar. Sei que encontrei meu caminho em ti. Não tenho medo do que vem pela frente,
o que estamos vivendo não tem preço e ninguém, absolutamente NINGUÉM tem noção de como complementamos um ao outro... Eu estou deixando de dar satisfação a todos: se alguém entendesse também pediria para viver isso."

No Mundo Real
O nome disso era certeza. Tinha certeza. Uma certeza límpida, transparente. Pertencia àquele homem de uma maneira insana, como jamais havia sequer sonhado ser possível. E tudo parecia fácil. Alice achava que, se estivesse com ele, seriam sempre os dois em qualquer lugar que escolhessem para viver. Ficava absorta e admirada diante da maneira que ele tinha de se apropriar, de caminhar de modo reto diante de todas as suas incertezas. E o amava ainda mais, se perdia ainda mais, e não sabia mais o caminho de volta.

VII
Wonderland
"Alice, tu és minha vida, amor. Tentei tanto ligar pra você hoje!! Dá para sentir que estou chegando logo? Dá pra sentir que eu te pertenço, pertenço ao seu mundo? Você ainda tem alguma dúvida sobre nós? Posso garantir que tudo o que vivo hoje se deve a você. Tudo necessita da nossa química. Nada é completo sem você. Contando os dias para começarmos a viver. Me espera. Te amo."

No Mundo Real
Longos telefonemas animavam o dia de Alice, faziam o sol brilhar mesmo que chovesse muito. Ouvir aquela voz acordava cada célula de seu corpo, fazia com que quisesse viver todos os curtos segundos como se fossem séculos. A impressionava a facilidade com que se faziam felizes. E bebia a sensação com uma sede que nem suspeitava que pudesse existir. Bebia em grandes goles. Tinha sede de viver. Não queria mais saber se havia outro lugar para estar. Não queria estar em outro lugar.

VIII
Wonderland
"Meu amor, eu estou completamente absorto e apaixonado! Alice, quero muito te amar, te fazer amor, te foder, te namorar, conquistar, galantear, te dar a felicidade, te fazer sorrir, te dar carinho, te dar amor, te entregar o mundo, te fazer plena com você merece.
Tenho um orgulho imenso da sua coragem e quero que você se orgulhe da minha, de chutar tudo isso e viver para você, para nós. A partir de agora, não deve ter medo de viver mais, intensamente e com mais força.
P.S.: Sim, eu sou a fucking Jealous Guy como Lennon não cansa de repetir! Fico louco de raiva se imagino simplesmente que alguém andou ligando para teu celular."

No Mundo Real
Fé. Era fundamental a fé renovada todos os dias naquele amor. Se apegar a isso como uma oração sem fim, um mantra absoluto. Alice tentava não enlouquecer sabendo que ele a amava, mas que todas as noites, numa casa em que não era sua, ele se deitava e acordava ao lado de outra mulher. Logo depois de abrir os olhos e ficar feliz porque amava, vinha a náusea de saber que seu amor não era seu. Para Alice, ficavam as noites longas, a cama imensa em que dormia sozinha, a masturbação furiosa com os olhos cheios d’água.
IX
Wonderland
"Quero que a noite seja boa hoje para você, meu bem. Falar com você faz os dias parecerem mais fáceis (e as noites bem difíceis!). É incrível como o som de tua risada espontânea fica ecoando em minha cabeça: parece mais onírica pela distorção do telefone, pela distância... Um canto de alegria no meu ouvido é o seu gargalhar solto e descompromissado, Alice. Parece me mostrar o quanto a alegria pode nos tomar. Isso muda minha visão das coisas pela manhã."

No Mundo Real
Alice sabia que, embora o amasse e precisasse dele como um viciado em heroína precisa da droga, estava mais perto da idéia de um ser etéreo do que de uma pessoa real. Era personagem. Ainda um maldito personagem. Seu papel não era o principal e isso doía nela como uma lâmina de estilete enfiada entre as costelas. Tentava se convencer de que fazê-lo feliz bastava, que ser feliz bastava. Mas queria mais. Queria o toque, o sexo, a mão na sua, o abraço durante o sono. Sufocava. Morria afogada em seu mar de amor.

X
Wonderland
"O mês já está na metade, amor. Mais um pouquinho agora e a gente chega lá. Serão os dias em que duas coisas vão acontecer: o mundo vai parecer bonito e vamos saber o que é amar quem sempre amamos sem conhecer. Eu vou cuidar de você como ninguém teve a porra de coragem de cuidar até hoje. Te amo, me preocupo, te desejo, me desespero...
Chego em breve para te fazer feliz."

No Mundo Real
Estava acontecendo. Era real. Finalmente, o que Alice pediu, implorou, desejou a vida toda estava acontecendo. Deu sua vida a alguém, este alguém aceitou a oferta e vinha para ela, por ela. Construía um mundo todo na cabeça de fantasia, um mundo onde havia paz – e como queria essa paz, como precisava! Começou, então, a preparar a cena para receber seu grande, único e absoluto amor.

XI
Wonderland
"Um frio absurdo, chuva caindo leve e eu pensando que você deveria estar comigo naquela casa nova. Incrível como me doeu a falta de ti, hoje.
Fica bem e contando os dias. Te amo."

No Mundo Real
E Alice contou os dias. Não quietinha, escondida. Bradou ao mundo a sua espera, expôs seu amor, contou a todos. Os amigos ficaram felizes. Esperavam com ela. Finalmente, Alice seria feliz. Comprou flores, velas perfumadas, enfeitou a casa, cozinhou o prato preferido do homem que amava, comprou um lindo e caro vestido, se arrumou, perfumou e... esperou.

XII
Wonderland
"Ligo amanhã. Tudo deu errado. Nunca vou me perdoar por ter te machucado assim! Precisando muito de você agora, mas não quero que fique preocupada com nada, certo?"

No Mundo Real
E esperou, e esperou, e esperou... Por fim, percebeu que esperaria em vão. O chão desapareceu sob seus pés. Alice não sabia para onde ir, para onde olhar, como andar. Uma mão invisível estreitava sua garganta, impedindo a passagem do ar. E agora? Como viver sem. Não sabia mais viver sem. Era dele, pertencia a ele. Era rainha e escrava daquele homem. Como seguir? Alice não sabia. Simplesmente não havia pensado que ele podia escolher não vir, não ser dela, não ser para ela. Ele mesmo havia ajudado Alice a se livrar de todos os seus medos e dúvidas um a um. Ela segurou aquela mão estendida, forte e morena, e esqueceu que poderia sofrer. E agora sofria como nunca. Sabia que precisava, de alguma maneira, encontrar a Alice forte, blindada, que deveria continuar cuidando de si mesma, sozinha, sempre sozinha. Tinha sido um sonho bom, mas um sonho. O mundo real não tinha magia. Alguma coisa se quebrou dentro dela, produzindo um som agudo de espelho partido. Não havia como colar, como consertar.
Alice olhou para a mesa posta, tudo lindamente arrumado, lançou com força o prato enfeitado com a deliciosa receita que levou uma manhã para preparar ao chão. Por um momento, olhou o emaranhado de porcelana cara e comida misturados, embolados, perdidos. Assim estava sua alma agora. Apagou as luzes, jogou o vestido novo no lixo e foi para a varanda olhar o mar. Entendeu que o vazio em que vivia e que havia dentro dela eram maiores e mais profundos do que o oceano verde que brilhava sob a lua. Com os olhos ardendo de medo, solidão e tristeza, virou as costas e caminhou para o meio do vazio, para a cama onde dormiria, mais uma vez, sozinha com seus medos.
THE END.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sistema Métrico


Para um, não sou boa o bastante, o que era qualidade tornou-se defeito.
Para outro, sou boa demais, perfeita demais. Não está à minha altura.
Para outro, ainda, encantadora, inteligente, bonita, mas o momento não é certo.
Para aquele, sou ótima, maravilhosa, mas não quer comprometer a confiança, a amizade.
Para aquele outro, sou bárbara, brilhante, o conjunto da obra impecável, o que sempre quis numa mulher, mas não acha prudente, não quer me magoar.

Sou boa o bastante, má o bastante, perfeita o bastante, cretina o bastante.
Quando é que vão entender que sou somente a medida exata de mim?

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Dalila



Ela não era mulher de muitos amores.Teve namorados e amantes. Muitos. Mas não amores. E com eles fazia de tudo. Com cada um de um jeito diferente. Para cada um, uma fantasia. Sempre dizia (e pensava realmente) que os limites de um quarto nunca são firmes o bastante que não se possam ultrapassar e, portanto, transgredir.
E assim agia. Quando estava a fim, não havia o que lhe impusesse barreiras. Nenhum beijo era proibido. Nenhum ato era obsceno. Nenhum gesto, palavra ou pensamento era profano demais para ser realizado com toda a delícia.
Apenas uma coisa a perturbava, constrangia, incomodava o suficiente a ponto de fazê-la desistir de qualquer companhia. Não suportava que tocassem em sua cabeça. Nenhum afago nos cabelos. Nada. Considerava uma mostra de fraqueza receber um simples cafuné. Achava o seu crânio, a sua cabeça, os seus cabelos, a caixa que guardava o cérebro, uma coisa sagrada, o templo que não deveria ser profanado. O resto do seu corpo podia ser do mundo, de quem ela quisesse, de quem o tomasse. A cabeça era só sua. Era território que deveria ser explorado apenas pelos eleitos. Mas ela nem sabia se os eleitos existiam.
Assim seguia a vida. Passavam os dias, as noites e os homens, sem que nenhum conquistasse o direito de declarar-se dono e senhor desse feudo. Até que um dia as coisas ficaram diferentes. Uma chuva forte encharcou a cidade. A natureza parecia querer varrer tudo e todos por força da água e do vento. Pegou-a desprevenida no caminho de casa. Ela procurou abrigo. Entrou numa loja, toda molhada, a maquiagem borrada, o cabelo desfeito. Ficou com vergonha. Era uma loja elegante, pretensiosa mesmo, numa daquelas ruas chamadas de alameda. E aquele homem veio em sua direção, perguntou se podia fazer algo por ela e, solícito, ajudou-a a tirar o casaco encharcado. Trouxe uma toalha macia e, olhando muito dentro e muito fundo em seus olhos, começou a secar seus cabelos muito lentamente. Então, ela deitou a cabeça naquele ombro desconhecido e o universo deles mudou. A chuva parou de repente, como que oferecendo uma prenda a um deus desconhecido e mítico, e a Terra recomeçou a girar.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009


Sim, Bela Lugosi is dead! Os vampiros pós-tudo usam bloqueador solar fator 500 e passeiam em plena luz do dia. Já não temem virar pó sob o sol. Freqüentam baladas ostentando caros óculos e escuros, usam Armani, misturam-se aos mortais, que não encaram só como praça de alimentação. Fazem amigos, vejam só! E, pasme, estudam com outros jovens coloridinhos semi-góticos. Pobres vampiros. Tenho saudade do Nosferatu. O último suspiro de elegância foi dado por The Hunger, que virou cult movie. Nem Anne Rice salvou as criaturas da maldição de Tom Cruise (odeio esse cara!!). Ganharam seriados de TV com híbridos humanos e uma caça-vampiros patricinha. Agora frequentam as telonas vivendo romances adolescentes. E o pobre Nosferatu ganhou remake. R.I.P.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Astronomia


Olha e olha o céu. Bonito, o céu naquela noite. Apalpa os bolsos procurando alguma coisa. O que é mesmo? Não sabe bem, mesmo assim procura e procura. E olha para cima, com ar ansioso.
Noite clara, como não se via mais. No bolso da calça, talvez... talvez encontre o que procura. Mas não neste bolso. Ela olha o céu novamente. A última vez que o fenômeno aconteceu foi em Outubro de 1961, no dia 7. Acontecerá novamente em 2052, no dia 18 de Novembro. E acontece hoje.
Enquanto espera, pensa no carro estacionado, nas contas que precisa pagar e na limpeza que fez em casa. Antes de sair deixou tudo impecável. Adora voltar da rua e sentir um cheiro de ar fresco e limpo quando abre a porta. No bolso de trás, talvez? Procura com cuidado, enfiando bem os dedos na dobra da costura interna. Nada. Não está ali.
Alinhamento de planetas. Nome interessante. Durante o fenômeno, a Lua fica a 402 mil quilômetros da Terra, Vênus a 150 milhões e Júpiter a 870 milhões. Planetas em linha, mas a uma distância segura. Não é um encontro. É uma espécie de comboio.
Ana lembra o que ele lhe disse horas antes enquanto acariciava seu pescoço:
- Vai ser bonito. O céu. Vamos ver isso juntos, alinhados como os planetas.
Ela parada ali, o par de binóculos pendurado no pescoço, esperando e esperando. Pensava e pensava nas palavras que saíam da boca morena, macia, sorriso aberto, quase sincero. A boca de promessas vãs, a boca que dizia coisas que jamais aconteceriam. Não entendia a necessidade da ‘não-verdade’ dita assim, de modo tão mesquinho. Ele sabia que se dissesse a verdade, quer fosse boa, quer não, Ana entenderia. Sempre. Lidava bem com verdades, com qualquer verdade. Não aceitava bem as mentiras, principalmente de quem dizia lhe amar como a própria vida. E promessas que não iriam se realizar, essas ela simplesmente abominava.
No bolso da jaqueta. Será??? Merda! Em que porcaria de bolso enfiei... Enfiei o quê? Procura mais um pouco, a jaqueta tem um botão apertado na casa que fecha o bolso, demora a abrir, os dedos finos já meio frios pelo ar da noite. O uso de binóculos permite visibilidade total do movimento astronômico. Um telescópio permite que se veja somente um dos astros de cada vez. O tapete da sala, em frente à porta de entrada é novo. Ana nunca gostou de tapetes puídos, gastos, sujos. Este jamais ficaria manchado. Ela cuida disso pessoalmente.
O céu sem nuvens promete um bom espetáculo. Queria que tudo fosse claro assim, como o céu. Não havia necessidade de fatos nebulosos, nuvens escondendo atos. Sua cabeça funcionando sem parar. Pensa que podia conviver facilmente com a situação mais torpe, mais suja, mais indigna; que aceitaria o homem mais canalha, a tarefa mais abjeta, desde que tudo fosse a mais pura realidade, sem enganação, sem truque. Um senso de moral estranho, um código particular, mas serve bem. Funciona. E onde meti a porcaria da chave??? Chave!!! É isso que busca tão avidamente. O bolso interno da jaqueta, talvez. Junto com o talão de cheques. Procura e procura e procura. Esquadrinha os cantos do bolso com muito cuidado. A nódoa no tapete deu trabalho. Quase duas horas até remover completamente. Os pingos pequenos que ficaram em volta foram os mais difíceis, embora muito pequenos. E tomou um cuidado enorme na escolha do produto certo. Tapetes rotos ou manchados a incomodam desde sempre.
Os planetas Vênus, Júpiter e Lua entram em conjunção e ela assiste. Bonito. Um alinhamento de três planetas, assim, com o céu tão claro! Um triângulo amoroso no céu. Na vida, nem sempre é assim. Abriu o livro em que procurava uma citação naquela manhã, estava escrevendo um artigo e precisava lembrar exatamente as palavras. O autor era bom, mas qual era a palavra mesmo? Pegou o livro na estante. Era dele, havia esquecido em sua casa. Esquecimento providencial. Abriu e viu. Estava lá. A foto. Uma mulher. Estranha mulher. Não era bonita. Pescoço muito curto, cabeça um pouco grande. Cabelos pintados, obviamente mais escuros, a boca seria bonita se não fosse quase inchada. O queixo duplo, evidenciando o peso fora de controle com um efeito bastante antiestético. A roupa de gosto duvidoso brigando com a cor de um batom fora de moda. E a dedicatória.
“Amor, és minha vida. Ti doluuuu.... Xero.” O nome da mulher da foto e o dele enlaçados em um coração desenhado em vermelho. A data era da véspera do alinhamento dos planetas.
Vulgar. Foi a palavra que saltou à sua frente quando analisou a imagem. Personificadas ali todas as coisas que ele dizia odiar. O exagero nas roupas coloridas, o tratamento infantil dado a um adulto, a demonstração de afeto de modo adolescente, o jeito de escrever, as coisas que ele dizia detestar com fúria. Mas guardara a foto no livro favorito. O bolso da camisa, claro! Encontrou, finalmente. A pequena chave delicada, dourada, com a pequena pedra verde engastada. Abria a caixinha que guardou no porta-luvas do carro, logo depois de terminar a limpeza do tapete. Respira com mais calma e observa o céu. Pensa nele. Quando iam saindo, ele disse que não poderia ver com ela o fenômeno no céu. Tinha um compromisso. Sabe que prometeu, lamenta perder, mas depois vê uma foto na internet. Ela assiste ao vivo. Lá está a conjunção no céu claro, o ar frio. Os planetas alinhados como só se veria novamente em 2052. Pensa que até lá o tapete da entrada já estará arcaico e ninguém se importará com possíveis manchas antigas de sangue. Talvez ela também já esteja crestada como um velho papel. E, sem dúvida estará antiga a preciosa caixinha onde guardou com cuidado a língua do homem que ama, trancada com a pequena e delicada chave. De dentro da caixa, onde repousa em gaze branca, imaculada, a língua não mais fará promessa alguma que não pretenda cumprir.