terça-feira, 28 de abril de 2009

MATEMÁTICA



Moro num lugar quente, mas hoje chove e faz frio. Não aquela chuva feliz dos finais de tarde, chuva cheia, que vem para lavar o pó, alegrar as plantas e refrescar o calor. É uma chuva fina, constante, que desce de um céu de chumbo, tão pesado que acaba se misturando com o mar numa linha fina. O frio e o vento juntos produzem o efeito de pequenas lâminas. E me sinto assim, mesmo num lugar onde tudo deveria ser bom, iluminado, pleno, farto.
A explicação poderia ser complicada, cheia de meandros filosóficos, de firulas conceituais, mas é muito, muito simples. Estou assim porque sou incompleta. Sou incompleta porque não sou uma, mas a metade de dois. Matemática da mais simples. Estou incompleta porque mesmo com todo o discurso de auto-suficiência das pessoas do meu tempo, não gosto de estar só. E mesmo os elogios, as cantadas, as observações de admiração e encantamento deixam um certo gosto amargo no final. Afinal, se sou ‘tão tudo’, deveria me bastar, não? Então o dia passa, tomo outro gole de chá e imagino se um dia vou chegar a ver completar-se a tal equação.

domingo, 26 de abril de 2009

RELAPSA

Tenho negligenciado esse espaço porque ando envolvida com crimes e sexo. Calma, calma... Estou dando mais atenção no momento ao outro blog, http://sexoecrimecialtda.blogspot.com/, em que publico textos meus e de outros autores.
Enquanto isso, leio coisas. E reli um texto do Itamar Assumpção que gostei muito. O cara tinha um truque qualquer ao combinar as palavras que transformava as frases em objetos de estudo. Bacana. Coloco aqui para dividir com vocês.

Código de acesso
(Itamar Assumpção)
Eu não tenho preço
Bem mal te conheço
não estou à venda, menina
Não quero seu cash, ticket, endereço
poupe sua renda e propina
O seu remelexo, seu corpo, seu berço
A sua mansão com piscina
Dispenso o almoço, o incenso, o pescoço
Carrões, porcelana da China
O meu código de acesso, é imenso
É nexo, é dor, é flor
É côncavo, é complexo
É denso, é afago, é amplexo
É o ninho do verso de amor
Não suba que eu desço
Nem reze esse terço
melhor ver se eu tô lá na esquina
Não click esse flash, recolha seu lenço
Abaixe sua adrenalina
Não quero começo, seu cheque agradeço
Seu avião com tudo em cima
Seu flat, seu beijo, tesão do seu desejo,
Seu pé de laranja lima
É meu código de acesso, é intenso
reflexo é som é cor
É múltiplo, é convexo, é manso é sutil, sonho é sexo
É uma linda canção de amor

quarta-feira, 15 de abril de 2009


segunda-feira, 13 de abril de 2009

UM, DOIS, TRÊS E CONTANDO...


Tempo já foi um conceito para mim. Alguma coisa vaga, eu tinha muito ainda, podia esbanjar o quanto quisesse. Me preocupar? Até me preocupava, sim. Mas não era uma preocupação concreta, um tijolo pesado e seco atravessado na garganta. Era mais uma sensação futura. Aliás, futuro também era uma coisa meio distante. Também havia muito. Dava para planejar, fantasiar, desejar. Não sei bem quando tempo e futuro se amalgamaram, e um esgotou rapidamente a reserva do outro. Vieram outros conceitos, os da realidade. Vários. O pior de todos, o que chegou com mais propriedade, foi a angústia. Aderiu à minha pele, entranhou como perfume caro, mas ruim, daqueles que até tem um bom nome, mas deixam um rastro pestilento inconfundível. E até hoje, com o futuro e o tempo bem menores, é a angústia quem me acorda todas as manhãs com as garras longas e magras se fechando sobre meu pescoço.

O Crime Compensa


Copiando descaradamente a nota publicada pelo Andre Esteves, do site Beco do Crime:
Contos selecionados para a antologia Assassinos S/A
Já foram escolhidos os 20 autores que terão um conto publicado na coletânea de contos policiais da Editora Multifoco. Com muita alegria, constatamos que 6 escritores aqui do Beco foram selecionados - Valdeci Garcia, Oscar Bessi, Denise Ravizzoni, Josué de Oliveira, Raphael Montes e Andre Esteves. Temos ou não um time de primeira? Aí vai a lista completa:

1. A Festa de Aniversário – Hélio Jorge Cordeiro
2. A Sangue Frio – Daniele Barizon
3. A Vida por um Deslize – Tiago Barbosa
4. Almas de Carne – Kinho Vaz
5. Carta de Reclamação, Amor e Óbito – Jana Lisboa
6. Crimes da Lua Minguante – Ronaldo Luiz Souza
7. Frio – Denise Ravizzoni
8. Identidade Secreta – Afobório
9. Noite Horrenda – Fabrício Romano
10. A Professora – Raphael Montes
11. O Mistério da Chave para o Real – Luiz Calcagno Fettermann
12. (sem título) – Adriana Santos Silva
13. O Piano e as Mãos – Valdeci Garcia14. Como Tudo Começou - J. Miguel
15. O Homem Insone e a Vingança da Mosca - Leandro Fonseca
16. Delírio em Preto e Branco – Josué de Oliveira Mello
17. Eco - Andre Esteves
18. Os Olhos do Abutre - Dante Coslei
19. Antropofagismo - Oscar Bessi Filho
20. Silêncio – Sergio Chaves

O lançamento do livro será em junho, no Rio. Ainda não tenho a data exata, mas informo assim que souber, assim como o link de como comprar o livro para quem estiver interessado. Para quem me disse que 'essa coisa de escrever sobre matar gente' era besteira, só tenho como resposta uma frase feita, mas eficiente:
- Viu!! Eu disse o crime compensava.

Valeuuuuuuuuuu!

sábado, 11 de abril de 2009

BALA PERDIDA


LANÇAMENTO DO INCRÍVEL, FANTÁSTICO, IMPERDÍVEL, FENOMENAL E MARVILHOSO BLOG


POR LÁ FICARÃO OS CONTOS SOBRE CRIMES, PERSONALIDADES CONTURBADAS, PERSONAGENS DESEQUILIBRADOS E AFINS, ALÉM DE TEXTOS DE ALGUNS SERIAL WRITERS AMIGOS, QUE PREZO PELA ESCRITA E POR SEREM QUERIDOS A MIM. AQUI FICARÃO MEUS ESCRITOS PESSOAIS, CONTOS CONFESSIONAIS E OUTRAS COISINHAS ASSIM. ESPIA POR LÁ. SURPRESAS INTERESSANTES TE AGUARDAM.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Corrigindo

O link do conto Replicante, que coloquei antes, estava com problemas.
Aí segue o link certo. Passa lá. Gostei de ter escrito este texto.


http://www.3ammagazine.com/brasil/replicante/

quinta-feira, 26 de março de 2009

Do amor


Estive. Tive. Estivemos. Esteve. Teve. Eu a você, você a mim. E persiste a sensação do não-ter. Talvez porque sempre tivemos. Talvez porque nunca teremos. Ou então por alguma falha na relação tempo-espaço que criamos pra viver. Paciência? Nunca foi o meu forte, nunca foi minha virtude. Prefiro os percalços, mas conhecendo o gosto da saliva, da língua e sabendo para onde leva cada caminho que percorre o corpo. O resto é mente.

terça-feira, 17 de março de 2009

Carne fresca

Neste blog procuro não assassinar os personagens (claro, nem sempre é possível). É mais um diário, anotações, coisas assim.
Mas na 3AM tem conto novíssimo publicado - Replicante - estrelado por um dos maníacos de costume. Passe lá e espie.
http://www.3ammagazine.com/brasil/index/fiction

sexta-feira, 13 de março de 2009


FORA POR UM TEMPO.
NÃO ABANDONEI O BLOG,
NEM O DEIXEI POR AÍ
PRA VIRAR LIXO NO CYBER
ESPAÇO.
VOLTO EM ALGUNS DIAS.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Tive uns dias ruins... Ok, tive umas semanas ruins. Então, tento desesperadamente lembrar de coisas que me fariam feliz. Quero fazer uma daquelas listas de favoritos. Procuro, procuro, e descubro que não sei bem. Ou minha memória anda com grandes falhas, ou tenho falta dessas tais coisas favoritas que fazem parte da lenda pessoal de todo mundo. Que merda! Até isso tem que ser complicado? Como faço para ser simples? Como faço só para ser, e pronto.... não ansiar, não ampliar, não temer? Só ser! Não sei. Se algum dia soube, ficou nesses vazios de memória. Em todo caso, faço um esforço e busco lá no fundo da parede que bloqueia as lembranças felizes, aquelas pequenas coisas que fazem a alma grande, que dão uma sensação de conforto seguro, as tais coisas favoritas. Vamos a elas:
1. Um filme bom
2. Cheiro de chocolate
3. Beijo de boa noite
4. Lençóis brancos e limpinhos
5. Dias frios
6. Banho quente
7. Músicas do Lenine
8. Sexo de manhã
9. A delícia de um livro bom
10. O par de olhos negros de que gosto tanto.
Ao escrever o décimo item da lista, entendo por fim o motivo que me fez esquecer de ter o que lembrar.

A idade da razão?


Finalmente entendi a profética frase que ouvi em idos da minha memória relapsa feita do mais puro material descartável: a gente não recupera o tempo perdido. Na época, jurei que aquela era a mais deslavada bobagem, primeiro porque não achava que nada fosse perda de tempo, seja lá no que fosse que as pessoas empregassem suas horas. Depois, porque o conselho em si soava um pouco ridículo, anacrônico, ultrapassado. Só que acordei com quarenta anos e achando que não ia recuperar o tempo que havia perdido. E a profecia oca se tornou real.
Peguei o costumeiro chá quase fervendo, sem açúcar e sem afeto, liguei o rádio para ter a ilusão de que estava me informando sobre as coisas do mundo, e fui me observar com calma no espelho grande do quarto. Tentei usar um olhar meio alienígena, como se estivesse vendo aquela mulher que apareceu refletida pela primeira vez. Um clone estranho de mim. O que vi confirmou o medo, a dúvida, a dor e a surpresa.
Em todo esse tempo que passou, assim como o velho personagem nonagenário de García Márquez, jamais aprendi a pensar com a idade que tenho. Embora a aparência revelasse certa maturidade, que pode-se ler no olhar mais duro, mais distante, não tinha a mínima idéia de como era saber as respostas para as inquietantes perguntas que eu já fazia aos vinte. A diferença fundamental é que já não me preocupava mais em tentar respondê-las. Considerava um esforço vão.
Me doía no fundo de cada fibra menos elástica da pele as coisas que podiam ter sido e não foram. Afinal, para onde vai toda aquela vitalidade mágica que temos aos vinte, que renasce com fúria aos trinta e que foge como vampiro da luz aos quarenta. Que merda é essa que faz com que a gente finalmente entenda que é quase inevitável que a gente se torne exatamente aquilo que os outros acreditam ou imaginam que a gente seja. Por fim, concluo que não posso mais me observar com a isenção de um alienígena de passagem pela Terra, que não tenho esse desprendimento. As marcas do tempo fazem parte das escolhas que fazemos no caminho. E mais uma vez concordo tristemente com o personagem do livro do Márquez, um sábio se preparando para comemorar um possível centenário, que filosofa: a gente não sente por dentro, mas de fora todo mundo vê.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Sobre sim e não

Sorriu meio sem graça, sem saber que tinha uma mancha de batom no dente, daquelas que deixam qualquer sorriso impecável com um jeito meio suburbano de ser. Tinha ficado na fila do cinema por mais de meia hora. Era, no mínimo, desconcertante chegar ao guichê e ouvir que a sessão estava lotada. Foi então que surgiu o homem dizendo que a amiga que estava esperando não apareceu e, gentilmente, ofereceu o ingresso que tinha disponível. E ela retribuiu com um sorriso manchado de batom. Só depois descobriu a mancha quando foi ao banheiro, antes de comprar as pipocas. Isso era um sinal que ela deveria ter levado a sério. A mancha carmim no dente branco. Não é o tipo de coisa que se deva ignorar. Mas Isabel não ligou. Tomou seu lugar ao lado do moço e ficou lá até o final. Ele cheirava bem e a presença era agradável. Quando a luz acendeu novamente, conversaram um pouco sobre o filme (o diretor era anglo-indiano, a nova sensação dos cinéfilos). Ele disse que gostaria de vê-la outra vez. Ela disse que tudo bem. Trocaram telefones e cada um tomou seu rumo.
Matheus (o nome dele era Matheus e ela ficou feliz - achava que combinava com Isabel) era alto, usava óculos e tinha um rosto que ela definiu como suplicante. Um daqueles homens que não suportaria assistir a um filme sozinho num cinema lotado. Talvez por isso tivesse tomado conhecimento do seu pequeno drama na bilheteria e se apressasse em oferecer o ingresso. Ela se odiou quando descobriu que retribuiu a gentileza com um sorriso imperfeito, porque ele era bonito, charmoso e gentil. E Matheus tinha força, mas não parecia forte. E ela não gostava de medir forças. Gostava de ombro no ombro. Então, Matheus lhe parecera bom. E ele gostou da moça que ficou vermelha de leve (era mais para rosa), mas mantinha uma atitude de ataque, mesmo parecendo totalmente confusa diante do “não" da funcionária do guichê. Ela parecia não saber aceitar uma negativa, e ele achou isso bom. Para Matheus, Isabel pareceu uma corda tensa, esticada, mas não a ponto de se romper. Agradeceu em segredo a falta de consideração da amiga que não apareceu ao programa combinado.
Ela demorou mais ou menos uma semana para ligar (sim, a iniciativa foi dela). Em uma noite meio morna, lia Simone de Beauvoir (“morar apenas na minha pele enquanto o mundo é tão vasto”). Lembrou de Matheus de repente. Achou que devia falar com ele. Ele pareceu feliz em falar com ela. Conversaram um pouco e combinaram um jantar na noite seguinte. Ela iria encontrá-lo no restaurante (não, não precisava vir buscá-la). No fundo, não queria ainda entregar uma parte da sua história para Matheus, não queria revelar onde morava, como era sua casa, os objetos que tinha na sala. Ainda não. Continuou lendo até que a aranha do sono veio tecer sua teia.
No dia seguinte, procurou não pensar muito no encontro (deixaria as coisas fluírem). Mas, quando menos esperava, surpreendia os pensamentos fugindo na direção de Matheus. Será que gostava de ler? Provavelmente sim, já que tinha dado umas pistas no pouco que conversaram. Que tipo de música ouvia? Ela não iria suportar se ele gostasse de country e sertanejo. Se ele aparecesse ao encontro de jeans, camisa xadrez por dentro da calça, cinto de fivelão e botas ela seria capaz de morrer, de cair ali mesmo, dura e fulminada. E se fosse daquelas criaturas fanáticas por futebol, que acampa no sofá domingo à tarde com um monte de pacotes de salgadinhos fedorentos e uma dúzia de latas de cerveja para provocar sonoros arrotos? E se fizesse aulas de dança de salão? E se tivesse amigos insuportáveis, daqueles que não conseguem fazer nada se não for de modo coletivo e barulhento e não admitem novos membros na confraria? E se ele tiver uma mãe chata e grudenta, daquelas que querem ensinar receitas e como é que o filho gosta que dobrem suas meias e cuecas? E se sofresse de síndrome de comparação, insistisse em traçar um parâmetro infinito entre ela e a ex-namorada (e ela, claro, sempre estaria em desvantagem)? E se tivesse manias insuportáveis, tipo enfiar o dedo no nariz e ficar cutucando lá dentro cada vez que parasse num sinal de trânsito, e depois ainda grudasse meleca no volante? E se fosse compulsivo sexual e a traísse com qualquer baranga? E se fosse viciado em bate-papo na internet (coisa que ela não suportava)? E se tivesse hemorróidas e chulé? E se fosse um ciumento desequilibrado paranóico que implica até com a roupa que a gente usa, reclama do tamanho do biquíni e suspeita de tudo? E se...
E assim as horas iam passando. O momento do encontro ficava cada vez mais perto. No final da tarde, Isabel se sentia meio tonta, meio nauseada, como se estivesse num passeio de barco. O estômago se contorcia, as palmas das mãos suavam. Não estava doente. Estava paralisada de medo. Os muitos “ses” levantados durante o dia a fizeram gelar. Tinha ficado engessada numa roupa de pânico, projetando todos os passos futuros (saídas, namoro, paixão, brigas, convivência, possíveis traições, etc.). Não pensava mais na roupa que iria usar. Pensar em como se desculpar por não poder comparecer. Liquidou o assunto com um telefonema frio, dizendo simplesmente que tinha mudado de idéia e assumido outro compromisso. Tudo bem se Matheus pensasse que era louca. Isso não vinha ao caso. O que importava era que tinha se poupado de toda a dor. Não quis assumir o risco. Preferiu antecipar qualquer sofrimento. Não se dava conta que também tinha se poupado da vida. E nem pensou mais no que foi sem nunca ter sido.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Ingrediente Secreto

Ela senta na cadeira da varanda e pensa. Quando foi mesmo a última vez em que foi feliz? Feliz de verdade. Vamos lá, você sabe do que estou falando. Aquela felicidade de gargalhada, boca aberta mesmo, sem preocupação. Ela pensa. Pensa mais. Não lembra.
Mas lembra de outra coisa e procura. O que mesmo? Procura por vida, por cor. Vai até o armário e abre as portas. Nos cabides muitas roupas. Diversos tons de marrom. Diversos tons de cinza. Muitos modelos pretos. De vez em quando um verde. Pra acender a esperança. Não muito.
Vaga pela casa vazia, silenciosa. Ela também está assim, vazia, silenciosa. Não sabe que dia é no calendário do seu tempo. Nem quer saber. Está morando no oco da árvore. No labirinto.
Olha de um jeito demorado para o espelho e começa a se preparar. Tem convidados para o jantar. Nada formal. Primeiro os cabelos, maquiagem leve. Roupas e sapatos confortáveis. Casual, com ar de conforto caro. Vários tons de creme em sobreposição, como no armário. Uma jóia simples em ouro branco. Foi um presente. Um bracelete liso. Quase uma algema.
Na cozinha, os ingredientes. Um suflê. Todos gostam de suflê. Menos ela. Preferia servir os aromas secretos da paella, um prato fumegante e exótico de alguma receita tailandesa qualquer. O suflê é de cenoura. Vai servir aspargos também. A lágrima rola densa e se mistura com o que há na vasilha. Tempero de lágrimas. As suas lágrimas. Tudo no forno. Na mesa posta, os convidados esperam pelo prato principal.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Coraline e o mundo secreto - eu quero ver!!!








A história de Coraline Jones e sua aventura pelo “Outro Mundo” foi criada e publicada por Neil Gaiman em 2002 sob o título Coraline, saltando direto para a lista de best-sellers do New York Times, vendendo mais de 1 milhão de cópias e sendo traduzida em 30 línguas. “Quis escrever um livro sobre o que significa ser corajoso. Trata-se de estar apavorado e fazer o que precisa ser feito, apesar do medo e dos obstáculos”, revela o autor. “Também quis expressar que, certas vezes, as pessoas que nos amam podem não nos dar toda a atenção de que precisamos, e certas vezes aqueles que nos dão toda a atenção necessária podem não nos amar de maneira saudável”. Enquanto escrevia a história, Gaiman acompanhava com interesse o trabalho do diretor e animador Henry Selick (“O Estranho Mundo de Jack”). “Henry estava no meu radar como uma surpreendente força criativa. Então, quando terminei o manuscrito de Coraline, pedi que meu agente o enviasse a Henry. Isso aconteceu em torno de 18 meses antes da publicação do livro.” Henry Selick revela: “Quando li o manuscrito, fiquei impressionado pela justaposição dos mundos – aquele em que vivemos e aquele em que a grama é sempre mais verde. Todo mundo pode se identificar com isso”. Uma semana depois de receber o material, Henry concordou em participar do projeto. “O produtor Bill Mechanic – que já havia trabalhado com ele – comprou os direitos do filme, e Henry começou a trabalhar imediatamente no roteiro”, conta Gaiman.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Dicionário


Abismo. Abstinência. Ácido. Amargo. Aprofundar. Apunhalar. Aturdir. Beijo. Bélico. Bifurcação. Catalisar. Cativo. Deserto. Desintegrado. Desmoronar. Destruir. Egoísmo. Empecilho. Engano. Esquecimento. Febre. Ferida. Fragilidade. Frio. Gesto. Gilete. Guerra. Hibernação. Humano. Ilógico. Inacabado. Incerto. Incompleto. Intempestivo. Lábios. Labirinto. Limite. Machucar. Mistério. Necessidade. Nocivo. Obscuro. Olhar. Oráculo. Pacto. Perverso. Pornográfico. Possuir. Punhalada. Quase. Quente. Reabrir. Recordação. Ressentimento. Sabotagem. Sofrer. Solidão. Tarde. Tempo. Tudo. Úmido. Vampiro. Xiita. Zombar. Zoom.

Releituras


Estava relendo o blog de um querido amigo. Ele escreveu sobre os motivos que nos fazem gostar da vida, querer ficar vivos, e essa coisa toda que esquecemos quando as notícias do nosso jornal pessoal ficam ruins. Belo texto.
Querido, anota aí na sua lista de motivos as nuvens vistas de cima quando sobrevoamos uma cidade qualquer, a bordo de um desses aviões que não caem nem viram manchete. Parecem massas de algodão mágico em mutação. É um bom motivo.
...
Em dia de releituras, peguei um dos textos que gosto - Ligéia, do Poe. Que força têm aquelas palavras. Ligéia, uma mulher inteligente, articulada, perspicaz, com profundos e expressivos olhos grandes como a lua, presa, enclausurada num corpo tomado por uma estranha doença que a faz sofrer, e mesmo assim, querendo que seu amor sobreviva à morte. Menos otimista que meu amigo do blog, Poe não deu um final feliz à Ligéia, o que não diminui em nada a beleza e a construção fantástica do conto do velho Edgar.
Gosto tanto, que transcrevo aqui um trecho. Tomara que gostem também.

"Falei da cultura de Ligéia. Era imensa. Conhecia as línguas clássicas e modernas. E as ciências. Todas. Mas eram conhecimentos profundos, espantosos. Tanto que eu me sentia uma criança primária e me deixava guiar por ela no mundo da pesquisa física, da investigação, metafísica. Parecia saber tudo, e eu me curvava diante de sua esplêndida lucidez. E eu vivia estudando, pesquisando, ilustrando sempre mais a minha mente. Realmente, eu dependia dela para tudo. Até para pensar, resolver, solucionar. Para viver.
Agora vocês imaginem a minha situação quando de repente me vi sem Ligéia. Sim, eu a perdi. E fiquei como uma criança perdida tateando a escuridão.
Ligéia adoeceu. Dia a dia, acompanhei o trabalho da morte. E lutei como um desesperado. Mas as lutas de minha esposa eram mais vigorosas que as minhas. Não há palavras com força bastante para descrever a encarniçada resistência com que ela lutava contra a morte. Ela não queria morrer.
Mas morreu.
Eu era muito seguro do amor que Ligéia tinha por mim. Na morte, porém, tornei-me mais consciente da força de seu amor. Segurando-me a mão, fez-me repetir versos compostos por ela nos últimos momentos.
Nesse poema, comparava a vida a uma peça em que a morte era o último ato. E, descido o pano, apagadas as luzes, descobre-se que a peça é uma tragédia:
‘- O homem, e seu herói, o verme conquistador.’"

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Olimpo


Deuses sempre foram cruéis. Os gregos e todos os outros. Zeus, o ‘big boss’ era mulherengo e manipulador. Gostava de engravidar mortais gostosas e se divertia jogando uns contra os outros seus pares de pantheon.
Mitos. Cercados de mitos. Somos mitos também? Mulheres com cabelos de serpentes, éguas canibais, labirintos habitados por criaturas estranhas, rios murmurantes e bichos de cem cabeças. Nada diferente dos dias de hoje.

Chego atrasado à consulta. Droga. Pago pelos minutos em que não estou presente também. Justo? Quem disse que o mundo é. Por que a mulher que ouve o que digo e diz estar me tratando seria exceção? E lá vou eu, com cara de culpa já na entrada, sorrisinho sem graça, pedir licença. Ela sorri sem mostrar os dentes e faz sinal para o sofá.
- Está 10 minutos atrasado. Mas hoje posso compensar no final.
Surpresa. Nem sempre tenho razão.

Hera foi uma vaca ciumenta. Suportava as traições de Zeus e depois se esforçava em punir as amantes do marido e seus filhos, como fez com Hércules. Afrodite, a bela, traiu Hefesto com o guerreiro Áries. Por sua vez, Hefesto era manco por culpa de Zeus, que certa vez o lançou ao solo porque o filho – sim, Hefesto era seu filho – tomou o partido da mãe Hera durante uma discussão.

Sento, me ajeito como posso e entendo que a sessão começou.
- Não foi intencional. O trânsito estava ruim, o ônibus ficou retido.
- Você acha que penso ter sido sua intenção?
- Não penso nada. Só estou dizendo que não foi.
- Você está justificando sem motivo, então?
- Olha, não estou justificando. Não me faz sentir como se estivesse na porra do jardim de infância. Foi só um comentário. Pessoas fazem comentários.
- Os meus comentários estão irritando você?
- Não estou irritado, só disse que cheguei atraso. Merda, tudo tem um significado oculto pra você?
- Você pensa que há mensagens ocultas, códigos, em meio às frases que usa?
- Olha, pára com isso. Estou tentando manter uma conversa, certo? É melhor começarmos logo a porcaria da sessão.
- Reações defensivas. Não estou acusando você de nada. Apenas observando a escolha do seu vocabulário.
- Vai pro inferno, você e seu maldito vocabulário – eu grito, com raiva, até quase estourarem as veias da minha garganta. E a luz se apaga.

Os Titãs chegaram antes dos deuses. Travaram uma guerra violenta, os deuses levaram a melhor. Os cretinos prenderam os Titãs nas profundezas. Prometeu foi condenado a ter o fígado comido todos os dias por uma águia por entregar o fogo aos humanos. Chronos devorava sua prole. O inferno dos gregos tinha três andares.

Acordo com a garganta seca, os lábios quase colados. Nenhuma saliva, o sol ainda não aquece. Febre, a febre comendo meus olhos por dentro. Um gosto estranho, muito estranho. Estava na cama, mas com a roupa que usei ontem durante o dia todo. Há sangue na camisa. Na mão, ainda tenho a pesada e cara caneta de ouro que usei para perfurar por doze vezes a garganta de Aurora, a psiquiatra. Uma estocada para cada morador do Olimpo. Encerrei o tratamento. Declarei-me paciente em alta.

Poseidon segurava um tridente e governava as ondas do mar de acordo com seu humor. Os deuses eram cruéis.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Exílio


Desde que chegou à cidade, atraíram-lhe as pontes. Não as montanhas verdes dando forma ao vale. Não o céu claro a ponto de doerem-lhe os olhos. Não os trilhos do trem em meio ao tráfego obrigando os carros a manobrar em direção ao passado. O magnetismo estava no murmúrio do rio que rasgava as ruas, escorrendo como hemorragia de um grande corte. O rio e as inevitáveis e necessárias pontes. Debruçada nas balaustradas de concreto, observava as pedras imóveis em seu eterno atrito com águas que nunca paravam.
Em seu exílio voluntário, quis mais de uma vez escalar os pequenos muros e saltar para a veia aberta que jamais cicatrizava. Mas não naquela ponte. Nem na outra, colorida por árvores, povoada de um passaredo loucamente barulhento. Ou ainda aquela com vão maior formado por retângulos inexatos onde eventuais pescadores matinais encaixavam as pernas para a paciente espera (os peixes não viriam nem nesta nem na próxima manhã, pois eram das garcinhas brancas que espreitavam margens ou ilhas formadas por montinhos de seixos).
Embora intensamente quente durante o dia, a cidade amanhecia envolta em bruma fresca. Era a hora em que fazia suas explorações, vestida como os demais praticantes de saudáveis caminhadas. Seu álibi. O que realmente queria era conhecer todas as pontes. Investigava suas origens no arquivo histórico, procurava saber quem era o ilustre personagem que lhes empresava o nome.
Pensar em nomes remeteu-lhe ao seu e ao de outra Virgínia, a Woolf, a inglesa escritora. Ambas obcecadas por margens e rios. Ela perdida em si mesma, invadida pelas águas. A outra perdida em seu universo, construindo frases atormentadas como castelos de galhos que as águas iriam logo levar. Faria ela como a outra? Encheria os bolsos de pedras e se entregaria docilmente ao lodo do fundo?
Foi numa destas caminhadas, depois de atravessar trilhos, aproximar-se do que parecia um clube, que encontrou “A” ponte. Não de concreto. Não para veículos. Madeira, cabos e cordas numa rua vazia e arborizada. Cheio de mato e mofo. Uma ponte antiga, meio bamba, as teias, produto do trabalho de engenhosas aranhas, brilhavam os fios presos nos cabos e refletiam todas as cores do mundo. “A” ponte que ligaria sua trilha ao entendimento de tudo. As águas ali eram escuras, velozes e fundas. Perfeito. Era como um imenso imã puxando cada pequena parte do seu corpo. E ela foi. Os primeiros passos fizeram a ponte sacudir suavemente. Riu do próprio medo. Era irônico. Procurou por uma falha na trama dos cabos e ali sentou, as pernas soltas, suspensas, balançando, como fazem as crianças em um banco alto.
Era como se entendesse naquele momento o motivo de todas as coisas, a razão de tudo, ou a falta de. Faria ela como a outra Virgínia e se deixaria levar pela correnteza sem resistência alguma? Agora, que finalmente encontrara a sua ponte, compreenderia a atração pelas amuradas, a sensação de abismo? Por um momento achou que sim. Jogou as chaves que tinha na mão até ouvir o som do objeto que encontra a superfície de impacto. Medir a altura antes de cair? Não. Não ela. Não essa Virgínia. Atravessou a ponte e seguiu para casa, sem as chaves, mas com todas as portas abertas.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Alice e o Mundo Real


I
Wonderland
“Nunca te deixarei! Não seria capaz de simplesmente 'sair' da tua vida ainda que essa arrogância de achar que sou parte de ti seja redundamente presunçosa (Adoro adjetivos!).”

No Mundo Real
As palavras escritas chegaram aos olhos de Alice como uma espécie de bálsamo. Ela leu e sorriu. A frase era construída de uma maneira peculiar. Aceitou a idéia de se acostumar a ter esta presença nova e intensa em sua vida. Por dentro, também sorriu.

II
Wonderland
“Fiquei tão contente, tão feliz em ver que nossos 'códigos' estão tão bem representados pela tua coleção! Isso foi lindo, meu amor. Eu te amo, mesmo, e nossos símbolos me confortam: lembram o que há de importante em tudo que te digo e tudo que me dizes. Eu fico imaginando você procurando essas imagens, e que isso foi a sua maneira de me ter na tua cabeça.
P.S.:Tua voz ao telefone é uma bênção!”

No Mundo Real
A palavra ‘benção’ escrita ali foi uma revelação para Alice. Ela pensou que finalmente havia encontrado sua porção de sagrado e abraçou aquele amor como um recém-convertido. Seria devotada a este deus desconhecido que chamava de amor absoluto. A partir daquelas palavras seria seguidora fiel, faria todos os sacrifícios e cumpriria todos os ritos que a salvariam de todos os males e toda a mediocridade dos mortais comuns. Sentia-se especial, ungida pelo divino. Mesmo que dentro dela soubesse que os deuses, desde o princípio dos tempos, podiam ser cruéis e fazer com que seus seguidores passassem pelas mais duras provas.
III
Wonderland
“Vem falar comigo? Diz que está aí, mesmo que sejam 5h35min. Provavelmente não. Mesmo assim, eu te amo, Alice. Minha noite foi absurda sem você. Acorda, amor... Acorda! Eu deveria estar aí, mas, por enquanto, me diz que dormiu bem? Vai ser sempre a Alice que tanto amo? Por favor, seja. Nada me faz negar a porra da noite que eu tive sem você. Por que tu não estava lá, meu amor?”

No Mundo Real
Alice acordou em sobressalto. Parecia ouvir a voz que a chamava. Correu para conversar com o homem que amava, mesmo sendo tão cedo. Não via as horas pelo relógio, não contava o tempo assim. Sua vida agora pertencia a uma dimensão diferente. Respirava num outro ritmo, se alimentava de palavras e do resultado delas. Era assim, e havia nisso uma felicidade que não conhecia, não entendia. Uma sensação de abismo, de roda-gigante. Tudo seria diferente se eles assim quisessem.
IV
Wonderland
"À tarde estarei por aqui. Se quiser aparecer... Nem sei se vou sair este final de semana. Lembra que disse que prefiro ficar no nosso mundinho? E se eu alugar filmes só saio daqui na segunda-feira. Mal com tudo. Bem comigo. Não quero pena nem raiva. Nem sei o que quero se não for você...Virei dependente de você, você é minha vida... E agora? Alice, nunca esquece de mim, nunca desista da gente e nunca mais se sinta só depois de mim. Nunca mesmo."

No Mundo Real
As últimas reservas e resistência que haviam, Alice jogou por terra. Era ele, ela sabia. Acreditou em cada letra de cada palavra. Sempre as palavras e o poder que movimentam. Não se sentia mais só. Trazia a sensação de ter alguém com ela, por ela. O mundo tinha novas cores. Ou tinha cores, enfim. Cores que nunca existiram no mundo de Alice. Era, sim, um mundo de maravilhas. Atirou-se no delicioso abismo e sabia que não cairia. Flutuaria devagar até o fundo onde encontraria uma água morna, clara... e nunca mais seria só. O medo estava lá, ela sabia, dormindo em sua caverna, mas resolveu que, por ora, poderia fazer de conta que o dragão do medo não existia.
V
Wonderland
"Cada dia que passo longe de ti é um dia perdido... Tudo aqui está perdendo a importância: a cidade, o trabalho, minha biblioteca, as pessoas do dia-a-dia, a TV sempre ligada... TUDO me parece tão sem propósito que me inspira quase aversão. Não é mais aqui que minha vida está. Um sentimento de inquietação me toma de assalto quase que constantemente e não sei mais, sinceramente, como achar algo para descrever a sensação maravilhosa que é ver que você existe e está aí. Você se tornou o meu vício diário, minha paz e minha guerra, meu inverno e meu verão."

No Mundo Real
Era o céu... Como era delicioso ouvir tudo aquilo. Sabia o gosto daquela boca, a textura daquela pele, conhecia todos os toques, todas as respostas. Era feliz. Amava e era amada. Tinha forças para enfrentar os piores pesadelos e o seu próprio: o medo de ser abandonada, de ficar sozinha, de sofrer outra vez os horrores das noites em claro, da dor sufocante que a fazia sentir-se morta. Alice agora era alegre, cantava, tinha prazer nas pequenas coisas.... e sorria. Um sorriso enigmático, secreto, como o do terrível gato da história.

VI
Wonderland
"Acredite: eu sempre te amei. Só não sabia que existias. E amo cada vez mais. Não se preocupa comigo agora, se sinta feliz. Só isso. A barra está pesada aqui mas eu lembro de você, de nós e tenho certeza de que tudo vai passar. Sei que encontrei meu caminho em ti. Não tenho medo do que vem pela frente,
o que estamos vivendo não tem preço e ninguém, absolutamente NINGUÉM tem noção de como complementamos um ao outro... Eu estou deixando de dar satisfação a todos: se alguém entendesse também pediria para viver isso."

No Mundo Real
O nome disso era certeza. Tinha certeza. Uma certeza límpida, transparente. Pertencia àquele homem de uma maneira insana, como jamais havia sequer sonhado ser possível. E tudo parecia fácil. Alice achava que, se estivesse com ele, seriam sempre os dois em qualquer lugar que escolhessem para viver. Ficava absorta e admirada diante da maneira que ele tinha de se apropriar, de caminhar de modo reto diante de todas as suas incertezas. E o amava ainda mais, se perdia ainda mais, e não sabia mais o caminho de volta.

VII
Wonderland
"Alice, tu és minha vida, amor. Tentei tanto ligar pra você hoje!! Dá para sentir que estou chegando logo? Dá pra sentir que eu te pertenço, pertenço ao seu mundo? Você ainda tem alguma dúvida sobre nós? Posso garantir que tudo o que vivo hoje se deve a você. Tudo necessita da nossa química. Nada é completo sem você. Contando os dias para começarmos a viver. Me espera. Te amo."

No Mundo Real
Longos telefonemas animavam o dia de Alice, faziam o sol brilhar mesmo que chovesse muito. Ouvir aquela voz acordava cada célula de seu corpo, fazia com que quisesse viver todos os curtos segundos como se fossem séculos. A impressionava a facilidade com que se faziam felizes. E bebia a sensação com uma sede que nem suspeitava que pudesse existir. Bebia em grandes goles. Tinha sede de viver. Não queria mais saber se havia outro lugar para estar. Não queria estar em outro lugar.

VIII
Wonderland
"Meu amor, eu estou completamente absorto e apaixonado! Alice, quero muito te amar, te fazer amor, te foder, te namorar, conquistar, galantear, te dar a felicidade, te fazer sorrir, te dar carinho, te dar amor, te entregar o mundo, te fazer plena com você merece.
Tenho um orgulho imenso da sua coragem e quero que você se orgulhe da minha, de chutar tudo isso e viver para você, para nós. A partir de agora, não deve ter medo de viver mais, intensamente e com mais força.
P.S.: Sim, eu sou a fucking Jealous Guy como Lennon não cansa de repetir! Fico louco de raiva se imagino simplesmente que alguém andou ligando para teu celular."

No Mundo Real
Fé. Era fundamental a fé renovada todos os dias naquele amor. Se apegar a isso como uma oração sem fim, um mantra absoluto. Alice tentava não enlouquecer sabendo que ele a amava, mas que todas as noites, numa casa em que não era sua, ele se deitava e acordava ao lado de outra mulher. Logo depois de abrir os olhos e ficar feliz porque amava, vinha a náusea de saber que seu amor não era seu. Para Alice, ficavam as noites longas, a cama imensa em que dormia sozinha, a masturbação furiosa com os olhos cheios d’água.
IX
Wonderland
"Quero que a noite seja boa hoje para você, meu bem. Falar com você faz os dias parecerem mais fáceis (e as noites bem difíceis!). É incrível como o som de tua risada espontânea fica ecoando em minha cabeça: parece mais onírica pela distorção do telefone, pela distância... Um canto de alegria no meu ouvido é o seu gargalhar solto e descompromissado, Alice. Parece me mostrar o quanto a alegria pode nos tomar. Isso muda minha visão das coisas pela manhã."

No Mundo Real
Alice sabia que, embora o amasse e precisasse dele como um viciado em heroína precisa da droga, estava mais perto da idéia de um ser etéreo do que de uma pessoa real. Era personagem. Ainda um maldito personagem. Seu papel não era o principal e isso doía nela como uma lâmina de estilete enfiada entre as costelas. Tentava se convencer de que fazê-lo feliz bastava, que ser feliz bastava. Mas queria mais. Queria o toque, o sexo, a mão na sua, o abraço durante o sono. Sufocava. Morria afogada em seu mar de amor.

X
Wonderland
"O mês já está na metade, amor. Mais um pouquinho agora e a gente chega lá. Serão os dias em que duas coisas vão acontecer: o mundo vai parecer bonito e vamos saber o que é amar quem sempre amamos sem conhecer. Eu vou cuidar de você como ninguém teve a porra de coragem de cuidar até hoje. Te amo, me preocupo, te desejo, me desespero...
Chego em breve para te fazer feliz."

No Mundo Real
Estava acontecendo. Era real. Finalmente, o que Alice pediu, implorou, desejou a vida toda estava acontecendo. Deu sua vida a alguém, este alguém aceitou a oferta e vinha para ela, por ela. Construía um mundo todo na cabeça de fantasia, um mundo onde havia paz – e como queria essa paz, como precisava! Começou, então, a preparar a cena para receber seu grande, único e absoluto amor.

XI
Wonderland
"Um frio absurdo, chuva caindo leve e eu pensando que você deveria estar comigo naquela casa nova. Incrível como me doeu a falta de ti, hoje.
Fica bem e contando os dias. Te amo."

No Mundo Real
E Alice contou os dias. Não quietinha, escondida. Bradou ao mundo a sua espera, expôs seu amor, contou a todos. Os amigos ficaram felizes. Esperavam com ela. Finalmente, Alice seria feliz. Comprou flores, velas perfumadas, enfeitou a casa, cozinhou o prato preferido do homem que amava, comprou um lindo e caro vestido, se arrumou, perfumou e... esperou.

XII
Wonderland
"Ligo amanhã. Tudo deu errado. Nunca vou me perdoar por ter te machucado assim! Precisando muito de você agora, mas não quero que fique preocupada com nada, certo?"

No Mundo Real
E esperou, e esperou, e esperou... Por fim, percebeu que esperaria em vão. O chão desapareceu sob seus pés. Alice não sabia para onde ir, para onde olhar, como andar. Uma mão invisível estreitava sua garganta, impedindo a passagem do ar. E agora? Como viver sem. Não sabia mais viver sem. Era dele, pertencia a ele. Era rainha e escrava daquele homem. Como seguir? Alice não sabia. Simplesmente não havia pensado que ele podia escolher não vir, não ser dela, não ser para ela. Ele mesmo havia ajudado Alice a se livrar de todos os seus medos e dúvidas um a um. Ela segurou aquela mão estendida, forte e morena, e esqueceu que poderia sofrer. E agora sofria como nunca. Sabia que precisava, de alguma maneira, encontrar a Alice forte, blindada, que deveria continuar cuidando de si mesma, sozinha, sempre sozinha. Tinha sido um sonho bom, mas um sonho. O mundo real não tinha magia. Alguma coisa se quebrou dentro dela, produzindo um som agudo de espelho partido. Não havia como colar, como consertar.
Alice olhou para a mesa posta, tudo lindamente arrumado, lançou com força o prato enfeitado com a deliciosa receita que levou uma manhã para preparar ao chão. Por um momento, olhou o emaranhado de porcelana cara e comida misturados, embolados, perdidos. Assim estava sua alma agora. Apagou as luzes, jogou o vestido novo no lixo e foi para a varanda olhar o mar. Entendeu que o vazio em que vivia e que havia dentro dela eram maiores e mais profundos do que o oceano verde que brilhava sob a lua. Com os olhos ardendo de medo, solidão e tristeza, virou as costas e caminhou para o meio do vazio, para a cama onde dormiria, mais uma vez, sozinha com seus medos.
THE END.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sistema Métrico


Para um, não sou boa o bastante, o que era qualidade tornou-se defeito.
Para outro, sou boa demais, perfeita demais. Não está à minha altura.
Para outro, ainda, encantadora, inteligente, bonita, mas o momento não é certo.
Para aquele, sou ótima, maravilhosa, mas não quer comprometer a confiança, a amizade.
Para aquele outro, sou bárbara, brilhante, o conjunto da obra impecável, o que sempre quis numa mulher, mas não acha prudente, não quer me magoar.

Sou boa o bastante, má o bastante, perfeita o bastante, cretina o bastante.
Quando é que vão entender que sou somente a medida exata de mim?

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Dalila



Ela não era mulher de muitos amores.Teve namorados e amantes. Muitos. Mas não amores. E com eles fazia de tudo. Com cada um de um jeito diferente. Para cada um, uma fantasia. Sempre dizia (e pensava realmente) que os limites de um quarto nunca são firmes o bastante que não se possam ultrapassar e, portanto, transgredir.
E assim agia. Quando estava a fim, não havia o que lhe impusesse barreiras. Nenhum beijo era proibido. Nenhum ato era obsceno. Nenhum gesto, palavra ou pensamento era profano demais para ser realizado com toda a delícia.
Apenas uma coisa a perturbava, constrangia, incomodava o suficiente a ponto de fazê-la desistir de qualquer companhia. Não suportava que tocassem em sua cabeça. Nenhum afago nos cabelos. Nada. Considerava uma mostra de fraqueza receber um simples cafuné. Achava o seu crânio, a sua cabeça, os seus cabelos, a caixa que guardava o cérebro, uma coisa sagrada, o templo que não deveria ser profanado. O resto do seu corpo podia ser do mundo, de quem ela quisesse, de quem o tomasse. A cabeça era só sua. Era território que deveria ser explorado apenas pelos eleitos. Mas ela nem sabia se os eleitos existiam.
Assim seguia a vida. Passavam os dias, as noites e os homens, sem que nenhum conquistasse o direito de declarar-se dono e senhor desse feudo. Até que um dia as coisas ficaram diferentes. Uma chuva forte encharcou a cidade. A natureza parecia querer varrer tudo e todos por força da água e do vento. Pegou-a desprevenida no caminho de casa. Ela procurou abrigo. Entrou numa loja, toda molhada, a maquiagem borrada, o cabelo desfeito. Ficou com vergonha. Era uma loja elegante, pretensiosa mesmo, numa daquelas ruas chamadas de alameda. E aquele homem veio em sua direção, perguntou se podia fazer algo por ela e, solícito, ajudou-a a tirar o casaco encharcado. Trouxe uma toalha macia e, olhando muito dentro e muito fundo em seus olhos, começou a secar seus cabelos muito lentamente. Então, ela deitou a cabeça naquele ombro desconhecido e o universo deles mudou. A chuva parou de repente, como que oferecendo uma prenda a um deus desconhecido e mítico, e a Terra recomeçou a girar.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009


Sim, Bela Lugosi is dead! Os vampiros pós-tudo usam bloqueador solar fator 500 e passeiam em plena luz do dia. Já não temem virar pó sob o sol. Freqüentam baladas ostentando caros óculos e escuros, usam Armani, misturam-se aos mortais, que não encaram só como praça de alimentação. Fazem amigos, vejam só! E, pasme, estudam com outros jovens coloridinhos semi-góticos. Pobres vampiros. Tenho saudade do Nosferatu. O último suspiro de elegância foi dado por The Hunger, que virou cult movie. Nem Anne Rice salvou as criaturas da maldição de Tom Cruise (odeio esse cara!!). Ganharam seriados de TV com híbridos humanos e uma caça-vampiros patricinha. Agora frequentam as telonas vivendo romances adolescentes. E o pobre Nosferatu ganhou remake. R.I.P.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Astronomia


Olha e olha o céu. Bonito, o céu naquela noite. Apalpa os bolsos procurando alguma coisa. O que é mesmo? Não sabe bem, mesmo assim procura e procura. E olha para cima, com ar ansioso.
Noite clara, como não se via mais. No bolso da calça, talvez... talvez encontre o que procura. Mas não neste bolso. Ela olha o céu novamente. A última vez que o fenômeno aconteceu foi em Outubro de 1961, no dia 7. Acontecerá novamente em 2052, no dia 18 de Novembro. E acontece hoje.
Enquanto espera, pensa no carro estacionado, nas contas que precisa pagar e na limpeza que fez em casa. Antes de sair deixou tudo impecável. Adora voltar da rua e sentir um cheiro de ar fresco e limpo quando abre a porta. No bolso de trás, talvez? Procura com cuidado, enfiando bem os dedos na dobra da costura interna. Nada. Não está ali.
Alinhamento de planetas. Nome interessante. Durante o fenômeno, a Lua fica a 402 mil quilômetros da Terra, Vênus a 150 milhões e Júpiter a 870 milhões. Planetas em linha, mas a uma distância segura. Não é um encontro. É uma espécie de comboio.
Ana lembra o que ele lhe disse horas antes enquanto acariciava seu pescoço:
- Vai ser bonito. O céu. Vamos ver isso juntos, alinhados como os planetas.
Ela parada ali, o par de binóculos pendurado no pescoço, esperando e esperando. Pensava e pensava nas palavras que saíam da boca morena, macia, sorriso aberto, quase sincero. A boca de promessas vãs, a boca que dizia coisas que jamais aconteceriam. Não entendia a necessidade da ‘não-verdade’ dita assim, de modo tão mesquinho. Ele sabia que se dissesse a verdade, quer fosse boa, quer não, Ana entenderia. Sempre. Lidava bem com verdades, com qualquer verdade. Não aceitava bem as mentiras, principalmente de quem dizia lhe amar como a própria vida. E promessas que não iriam se realizar, essas ela simplesmente abominava.
No bolso da jaqueta. Será??? Merda! Em que porcaria de bolso enfiei... Enfiei o quê? Procura mais um pouco, a jaqueta tem um botão apertado na casa que fecha o bolso, demora a abrir, os dedos finos já meio frios pelo ar da noite. O uso de binóculos permite visibilidade total do movimento astronômico. Um telescópio permite que se veja somente um dos astros de cada vez. O tapete da sala, em frente à porta de entrada é novo. Ana nunca gostou de tapetes puídos, gastos, sujos. Este jamais ficaria manchado. Ela cuida disso pessoalmente.
O céu sem nuvens promete um bom espetáculo. Queria que tudo fosse claro assim, como o céu. Não havia necessidade de fatos nebulosos, nuvens escondendo atos. Sua cabeça funcionando sem parar. Pensa que podia conviver facilmente com a situação mais torpe, mais suja, mais indigna; que aceitaria o homem mais canalha, a tarefa mais abjeta, desde que tudo fosse a mais pura realidade, sem enganação, sem truque. Um senso de moral estranho, um código particular, mas serve bem. Funciona. E onde meti a porcaria da chave??? Chave!!! É isso que busca tão avidamente. O bolso interno da jaqueta, talvez. Junto com o talão de cheques. Procura e procura e procura. Esquadrinha os cantos do bolso com muito cuidado. A nódoa no tapete deu trabalho. Quase duas horas até remover completamente. Os pingos pequenos que ficaram em volta foram os mais difíceis, embora muito pequenos. E tomou um cuidado enorme na escolha do produto certo. Tapetes rotos ou manchados a incomodam desde sempre.
Os planetas Vênus, Júpiter e Lua entram em conjunção e ela assiste. Bonito. Um alinhamento de três planetas, assim, com o céu tão claro! Um triângulo amoroso no céu. Na vida, nem sempre é assim. Abriu o livro em que procurava uma citação naquela manhã, estava escrevendo um artigo e precisava lembrar exatamente as palavras. O autor era bom, mas qual era a palavra mesmo? Pegou o livro na estante. Era dele, havia esquecido em sua casa. Esquecimento providencial. Abriu e viu. Estava lá. A foto. Uma mulher. Estranha mulher. Não era bonita. Pescoço muito curto, cabeça um pouco grande. Cabelos pintados, obviamente mais escuros, a boca seria bonita se não fosse quase inchada. O queixo duplo, evidenciando o peso fora de controle com um efeito bastante antiestético. A roupa de gosto duvidoso brigando com a cor de um batom fora de moda. E a dedicatória.
“Amor, és minha vida. Ti doluuuu.... Xero.” O nome da mulher da foto e o dele enlaçados em um coração desenhado em vermelho. A data era da véspera do alinhamento dos planetas.
Vulgar. Foi a palavra que saltou à sua frente quando analisou a imagem. Personificadas ali todas as coisas que ele dizia odiar. O exagero nas roupas coloridas, o tratamento infantil dado a um adulto, a demonstração de afeto de modo adolescente, o jeito de escrever, as coisas que ele dizia detestar com fúria. Mas guardara a foto no livro favorito. O bolso da camisa, claro! Encontrou, finalmente. A pequena chave delicada, dourada, com a pequena pedra verde engastada. Abria a caixinha que guardou no porta-luvas do carro, logo depois de terminar a limpeza do tapete. Respira com mais calma e observa o céu. Pensa nele. Quando iam saindo, ele disse que não poderia ver com ela o fenômeno no céu. Tinha um compromisso. Sabe que prometeu, lamenta perder, mas depois vê uma foto na internet. Ela assiste ao vivo. Lá está a conjunção no céu claro, o ar frio. Os planetas alinhados como só se veria novamente em 2052. Pensa que até lá o tapete da entrada já estará arcaico e ninguém se importará com possíveis manchas antigas de sangue. Talvez ela também já esteja crestada como um velho papel. E, sem dúvida estará antiga a preciosa caixinha onde guardou com cuidado a língua do homem que ama, trancada com a pequena e delicada chave. De dentro da caixa, onde repousa em gaze branca, imaculada, a língua não mais fará promessa alguma que não pretenda cumprir.