domingo, 22 de junho de 2008

Foi bom pra você?



Sexo. Primeiro, pensou bem na palavra, assim, inteira, piscando em néon azul. Depois, separou as letras, todas maiúsculas, e percorreu cada uma delas. Um exercício de imaginação e memória quase doentio. O contorno exercendo um fascínio, impedindo-a de piscar os olhos.
Primeiro o S. Sinuoso, sutil, serpente. Como os movimentos, que tanto desejava que fossem refletidos num espelho de vidro, ou no espelho de carne do parceiro de uma boa foda ocasional.
Depois, o E, evocando uma posição confusa, mas atraente. Uma das tantas posições que imaginava e não sabia se alguém já tinha ou não tentado. Seguiu, então, parao X. Ah, o X!!! Sempre trazia algo proibido, pernas torcidas, olhos vendados, a imagem de alguém com membros bem abertos, separados, mãos e pés amarrados às guardas da cama. Sim, o X era uma letra transgressora.
Finalmente, o O. Como uma boca redonda se fechando suavemente sobre um grande, brilhante e suculento membro ereto. A cabeça subindo e descendo lentamente sobre o pênis, terminando naquele O perfeito, muscular, com pequenos dentes brancos apenas insinuados.
Pensava em tudo isso enquanto suportava por não sei quantas vezes a trepada sem graça, sem imaginação. O papai-e-mamãe pouco criativo de um marido bonito, porém egoísta e tacanho, pensando somente no próprio prazer, se recusando a ousar. “Coisa de vadia”, afirmava ele, sempre que uma vontade secreta era mencionada. Continuou pensando nas letras brilhantes, em cordas, algemas, correntes, vibradores, cera líquida de velas ardentes, enquanto cravava lentamente o punhal que usava para abrir a correspondência nas costas de seu parceiro de sexo e casamento.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Capítulo III – Versículo I – Evangelho Feminino Profano


Fêmeas são dramáticas, e, em meio à imensa confusão mental, amadurecem. Finalmente, estão maduras e malucas o suficiente para perder as estribeiras, e precisam retomar o pé no mar onde estão mergulhadas. Desistem de achar um culpado, de tentar encontrar quem afinal colocou cada uma delas ali, naquela ilha cercada de estranhos por todos os lados. Lost. Não se enquadram, não se encaixam. Então, criam, improvisam. É preciso reinventar. O destino feminino foi biologicamente condenado e aprisionado ao mundo cosmético artificial, um arsenal de química importada. Na dúvida, é melhor lavar o rosto com água e sabonete de glicerina. Isso não muda o DNA.
Um dia ela desperta e não reconhece a própria voz. Fala em um idioma que ninguém compreende. As da sua espécie estão ocupadas com filhos e supermercado. Os do gênero oposto (ou complementar) procuram uma fêmea apta para acasalamento, mais jovem, mais firme, menos complicada, menos inteligente. E você lá, olhando aquilo tudo. Não dá pra simplesmente jogar o cérebro fora. Em algum momento do caminho esqueceu o que amou. Lembra vagamente, mas não consegue ver. É nebuloso. Sabe que viveu, que viu, que acreditou, mas é tão distante que esqueceu. Não suporta mais situações intrusas, constrangedoras e receia que uma agressividade mal domada provoque atitudes extremas, das quais sempre se arrepende. Como, por exemplo, dar um bofetão sonoro na atendente de loja que a chama de “meu bem”. Precisa recorrer a apoios externos para agir com segurança, ou tomar um antidepressivo, quem sabe!
É esquizofrenia pura de viver algo irreal, presença de amizades mornas, laços inexistentes. A natureza calada durante séculos desperta de algum lugar e grita: ACORDA OU SE MATA DE UMA VEZ! Ela acorda, e quer se eternizar. A convivência com tudo o que é habitual se torna um exercício árduo. Ela passa a temer a chegada de cada aniversário, não pela passagem do tempo (se acostumou a isso), mas por ter que repetir aquela velha e boa conversa por milênios inteiros.
Então, escava uma fresta de alguma maneira e a vida traz personagens novos. Opera-se o milagre. Não se sabe bem como, esses novos personagens compreendem seus sentimentos fora de ordem, suas idéias desalinhadas, e mesmo assim querem estar com ela. Ela é diferente. Eles sabem e não se importam. Entendem seus temores, ou pelo menos convivem com eles, e sabem que suas agressões surgem só para se defender. Ela sabe que a diferença é um atrativo. Para os novos personagens, uma espécie de deslumbramento. Para ela, uma resistência encantada, emotiva. Sabe que a experiência lhe dá uma aura qualquer (não pode explicar) e que seu raciocínio meio masculino é fascinante. Lembra da mãe, que lhe dizia que quem pensa muito desencapa os neurônios e envelhece neurótica. Não quer dramas. Quer ficar feliz. No meio do mar de merda estão os novos amigos. Entre os novos amigos, aquele que tem o poder de fazê-la sossegar. Compreende, entende, conhece os seus códigos e se comunica com ela. Sua cabeça gira rápido demais. Não existe um motivo real. Está mesmerizada pelo novo amigo, quer sugar como um vampiro genético o benefício da luz. Não tem medo. Apenas acha brilhante que alguém tão jovem possa conhecer tanto quanto ela algumas coisas que acontecem no mundo real, e não no estúdio com cenário de fundo pintado em que vive. Sabe que sua curiosidade vai chegar aos limites do intolerável e que precisa seguir, se apropriar, tomar. Mas, na verdade, quer trocar, sucumbir, quer que também tomem espaço em sua vida. É preciso que se certifique que não há confusão alguma. O sentimento nada tem a ver com isso, mas não pode mais viver sem a sensação da presença nova. É como uma droga. Ele detonou o botão de acesso a um repertório de memória, abre o arquivo de repente e vem com uma força tão grande que pode ser que em algum momento ela erre, ela force, ela perca. O preço é alto, mas o diagnóstico é urgente. E ela deita de lado, se encolhe e recita um antigo poema, rezando para que o susto seja menor do que a descoberta e que tudo fique assim como está.

domingo, 8 de junho de 2008

Da Vergonha


Vergonha é um sentimento engraçado. É um sentimento? Definir de que jeito? Pra mim e para toda a população do planeta é completamente familiar, mas a definição que podemos dar à vergonha é relativa. O que causa vergonha em alguns pode ser motivo de orgulho para outros. A vergonha dos velhos é diferente da das crianças. A dos homens, diferente da das mulheres. A das mulheres, diferente para cada idade, cada fase. E para cada mulher cabe a sua cota particular de vergonhas inexplicáveis e totalmente personalizadas. Vergonhas com grife própria.
Há as que não usam calças jeans por vergonha da bunda. As que não dançam em festas por vergonha de parecer garças desajeitadas tentando sair da lama. As que nunca, jamais, em hipótese alguma deixam que as vejam desmazeladas. Outras não têm o menor problema com isso, desde que estejam com um risco de lápis preto nos olhos e calcinhas limpas. São tantas, tão diversas, tão infinitas, tão íntimas e tão sutis as tais vergonhas que seria impossível falar de todas. Talvez até das minhas próprias. Quanto tempo levaria para enumerar minhas vergonhas? Não me refiro somente às físicas, aquelas que estão no corpo, que podem ser ou não reais. Me preocupam e intrigam mais aquelas outras, que nos corroem por dentro, como se o cérebro fosse invadido de vez em quando por uma dose generosa e corrosiva de ácido de bateria.
O mais insólito, na verdade, é o modo prosaico que me levou a pensar no tema. Comecei minha reflexão sobre as diversas vergonhas estendendo roupas no varal. Por um caminho intrincado que não saberia descrever em detalhes (o labirinto, o Minotauro, as migalhas de pão de João e Maria, Penélope que desmancha durante a noite o bordado que faz de dia...) cheguei à conclusão de que algumas mulheres não têm o menor pudor em chupar o pau de um estranho, mas morrem de vergonha de pendurar no varal panos de pratos surrados e velhos.
É uma lógica estranha, mas faz sentido. Afinal, não há orgulho nenhum em exibir, como bandeiras desfraldadas ao vento para todos os que quiserem admirar, o testemunho das pequenas misérias diárias dos trabalhos domésticos a que se submetem as donas daqueles trapos, que saem maravilhosas e poderosas, cabelo impecável, saltos, maquiagem, trabalham fora, conquistam o mundo, mas que revelam a mortalidade simples de lavar a louça e limpar o fogão. É um sentimento ancestral de vergonha que eu reconheço, compactuo e compartilho. Amanhã vou sair, linda e arrumada, para comprar novos panos de pratos.

Não cometo poemas.
A explicação é desnecessária.
Mas, de vez em quando
As letras fogem e se amontoam
Num grupo esquisito,
Uma espécie de ninho de aranhas.
Parece um poema.
Para mim, é um conto anêmico.