domingo, 30 de novembro de 2008

Mais Um

Publicando contos outro site, uma revista bem interessante.
Passa por lá também.
http://www.3ammagazine.com/brasil/index/fiction


Seco


Era assim, um universo seco. Os caminhos feitos de pequenas linhas se encontravam com outros caminhos, se bifurcavam e se uniam, como um mapa desenhado em couro velho, uma coisa meio passada. Lembrava um pouco a textura dos documentos antigos, a cor amarelada, as ranhuras minúsculas, os pontinhos de mofo parecendo poros abertos, muito abertos.

Através da lente de aumento observo o tal solo seco. Nenhuma vegetação. A devastação não é só provocada pela falta da benção da hidratação – santa água que tudo lava e tudo salva. É aquele tipo de devastação que resulta da passagem do tempo – o oráculo implacável - que vem com o castigo do sol e do vento, pelo açoite da areia, e, quase certo, pelo acréscimo generoso de uma boa dose de decepções, sofrimentos e agressões cotidianas.

Embora seco, crestado, gretado, meio sem vida, o solo conta uma história. Ignorar a sensação de desolamento é impossível. Dá assim uma tristeza meio distante, uma saudade que não sei bem de onde, nem do quê. Nostalgia. Banzo. Como se, além de seco fosse deserto, quente, rascante e...longe. É como olhar para mim mesma, lá atrás.

Sou agora a grande exploradora. Procuro tesouros enterrados no solo seco. Segredos de tumbas, grandes revelações, um corpo mumificado, um livro amaldiçoado, um poço dos desejos oculto na paisagem, jóias talvez.

E embora seja divertida a brincadeira de explorar, caio na real. O tempo de agora me chama. Preciso me apressar. Acendo aquela maldita lâmpada fluorescente que amplia as imperfeições e concluo que pele seca é uma merda. É duro ser mulher numa segunda-feira de manhã.



sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Quero Ser Marla Singer


Publiquei isso em outro blog, tempos atrás, em que escrevia sob pseudônimo. Hoje, relendo, me pareceu tão... 'de agora' que resolvi trazer para cá.
...
Branca quase azul, rouba calças das lavanderias automáticas para vender nos brechós, onde também compra suas roupas (de preferência vestidos de festa). Vive de refeições que o serviço social entrega para pessoas que já morreram, mora num hotel pulguento. Tem lábios grossos (“lábios de sofá italiano de couro preto”) sempre pintados de vermelho, o cabelo é artisticamente desalinhado, usa um risco de lápis muito preto nos olhos, quer morrer mas não consegue, come o Tyler Durden (Brad Pitt), tem um caso com o Narrador (Ed Norton) e diz coisas assim:
- Os funerais não são nada perto disto. São cerimônias abstratas. Só aqui tem-se a verdadeira sensação da morte.
- Não tenha medo. Ele não vai te comer (para T. Durden, referindo-se ao vibrador de plástico pink sobre a cômoda).
- A camisinha é o sapatinho de cristal da nossa geração. Você calça quando conhece uma pessoa, dança a noite toda e depois joga fora. A camisinha, não a pessoa.
Definitivamente, quero ser Marla Singer.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

???




Por quantos dias é possível levar a vida no piloto-automático?
Quanta dor alguém é capaz de suportar?
Por que caralhos insistem em dizer que você é especial se não há ninguém para dividir a cama?
Por quantos meses você tentaria iludir a solidão só com o som da TV ligada constantemente servindo de trilha sonora dos dias e noites inúteis?
Para onde se vai quando não há para onde ir?
O que acontece com seus livros e CDs quando você deixa de existir?
Qual é a idade da minha alma?
Eu não sei voar.

sábado, 15 de novembro de 2008


Numa certa viagem, descobri que há um enorme deserto no Brasil. Uma parte deste deserto está agora dentro de mim.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Variações do medo na etnia humana


A covardia produz diversos tipos de indivíduos. Todos seqüelados, claro, mas não necessariamente da mesma espécie.
Há o covarde evidente, aquele a quem você identifica durante a primeira troca de frases. Este, ao menos é, de certa forma, honesto. Há o covarde heróico, que faz de tudo para ocultar sua deficiência de caráter em prol de outras prioridades, como a vida social, por exemplo. Há o covarde festivo, simpático, até. Diverte-se com sua condição e faz disso motivo para riso, conseguindo, assim, ser aceito pelo grupo de modo geral.
E há o pior de todos: o covarde corajoso. Este, sim, desprezível. É pernicioso, pois na ânsia de parecer audaz, ilude, promete, mente. Não tenho certeza que não acredite, ele mesmo, em suas ‘qualidades’ propaladas, e as faz tão reais que você é capaz de abraçar suas causas. Este tipo fala bem, é convincente, tão sólido que ao ouvi-lo você é capaz de uma espécie de conversão instantânea. O covarde corajoso se torna sua religião, seu motivo de transe. Não há nada que ele peça que você não faça, não há nada que ele diga que você não abone, não há nada que você não esteja disposto a fazer por ele. Você é capaz até mesmo de sentir-se um ser miserável, assumindo culpas e sofrendo por elas, só para poupá-lo de aborrecimentos. Até que chega o momento de uma ação verdadeira. O momento em que é preciso polir a armadura, em que um ato de coragem se faz necessário. Bem, aí não conte com ele. Você olhará para o lado e só encontrará as convicções que acompanhavam sua devoção, já um pouco murchas, sem cor. Como um avestruz assombrado pelo medo das próprias mentiras, ele esconderá a cabeça num grande e nebuloso buraco. Que por lá permaneça.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Dando a cara pra bater


Volta e meia, me aventuro. Quase sempre me dou mal, tomo tombo, me arrebento. Mas sempre tento, e sempre mais, e sempre muito. Por isso escrevo. Eu, contista, me aventurei pelo mundo dos textos maiores. Saiu um romance. Atende pelo nome de NÓS SEM VOCÊ. Publico aqui o primeiro capítulo apresentando o personagem ELA, prova da minha falta total de senso de preservação. Como diria uma amiga, "pular no abismo feito uma vaca kamikaze"... Segue o texto, logo abaixo.

...


SOBRE ELA - I

Não sei como defini-la, descrevê-la. Nem preciso. Minha função aqui é outra. Sou o narrador, o escriba. Só relato fatos. Não sou a voz de ninguém. Apenas testemunhei como quem assiste a um filme banal numa madrugada insone. Mesmo assim, acho que vale contar. É uma espécie de histórico, de diário. Aconteceu com ela. Poderia ter acontecido com você.

Ela vive como todos, não vou situar nem tempo, nem espaço. Pense o que quiser. Imagine. É um lugar qualquer do planeta, um lugar em que qualquer um de nós poderia estar. Simples assim. Leva a vida, faz o que faz, o que gosta, o que precisa. Trabalho, família, amigos, essas coisas. Tem vontades secretas que sublimou, vontades novas que brotam sem aviso, realiza pequenos desejos, esquece de outros tantos. Ouve música aos quilos, lê às toneladas, vê mais filmes do que a população total de algumas cidades pequenas, mas não gosta dessa coisa esnobe de falar só sobre cultura. Odeia gente assim. O pessoal “papo cabeça” em tempo integral. “Tem hora pra tudo” - costuma pensar - embora não tolere manifestações explícitas de burrice crônica. Adora falar bobagens, rir das bobagens que ouve. É dona de um humor rascante, beirando o sarcasmo. Não é qualquer um que percebe onde termina a piada, onde começa o insulto. Limite sutil que ela cruza sempre que pode, ou quando não percebe. Por isso faz amigos com a mesma facilidade com que coleciona inimigos. Chamarei de antipatias, que soa menos dramático (mesmo que ela afirme que seres do gênero feminino possuam grande vocação para o drama, assim como as drag queens).

Não acredita em morte natural. Segundo ela, pessoas vão se envenenando aos poucos. Não com remédios, poluição, péssimos hábitos, comida industrial, doenças, metais pesados, agrotóxicos, drogas, álcool e cigarros, mas delas mesmas. Vão envenenando umas às outras até o limite do suportável e, então, simplesmente morrem. Logo, ninguém, em tempo nenhum, morreu, morre ou morrerá de forma natural. Todos assassinam uns aos outros. É o que ela acha.

Gostaria de encontrar alguma coisa. Não sabe o quê. Talvez um prato fundo, bem cheio de uma substância qualquer que mate todas as suas fomes constantes. Que fomes são? Pergunte a ela, se um dia puder. Eu não sei. Eventualmente faz como um personagem de Virginia Woolf: mantém os olhos abertos para preencher cérebro ao limite máximo. O mais próximo que consegue chegar da saciedade, da sensação de plenitude. Fugaz! Dura apenas alguns segundos.

Depois de muito pensar sobre o que tinha feito da vida, resolveu mudar o rumo da estrada. Pega um desvio. Quer literatura. Quer multiplicar, trocar, falar sobre autores, citações, biografias. Precisa de interlocutores, de desafios, de personagens. Quer que a questionem, que a instiguem, que a ameaça chegue perto, uma lâmina rápida passando à distância de um fio de cabelo. De que vale conversar com gente que só concorda? Duvida um pouco que a humanidade, no estado em que se encontra, possa fornecer esse tipo de indivíduo. Mesmo assim nutre esperanças. Quem sabe?

É tarefa complexa entender suas preferências literárias ou musicais. Trata-se de um ser mutante, moldável, mas não propriamente adaptável. Precisa ser convencida. Prefere observar os ambientes e absorver por osmose somente o que interessa. Caso contrário, a guinada precisa ser radical, o impacto grande, para sacudi-la, arrancá-la do marasmo. Depois da queda, o coice! Se não for assim, desaba no buraco escuro e cinza do tédio, e ali se acomoda, permanece.

Não é resistente à tecnologia. Mas não morre de paixão por computadores, mensagens eletrônicas e parafernálias em geral, embora não viva sem algo que produza som em cada ambiente da casa, um celular (mais para mensagens do que para conversas), e um bom forno de microondas. Ama a música e, portanto, ama CDs e outras mídias. Telas, teclas e botões são mortos para ela. Chatice necessária. Por força do ofício usa computadores diariamente, por muitas e muitas horas. Possui o ímpeto dos descobridores, o que a faz uma mulher curiosa, aprendiz eterna. Por isso conectou-se ao mundo pelos milhões de artifícios internéticos, links, blogs, espaços virtuais, e-mails, outlooks. Essa porcaria toda. Usa tudo como os índios americanos fariam com sinais de fumaça, ou a resistência francesa com os pombos-correio.

É uma necessidade vital para esta mulher estar ligada aos amigos. Por conta disso entrou, meio contra a vontade, em um desses nichos, tipo clube virtual. A curiosidade matou o gato! Um impulso a leva a fuçar em tudo, vasculhar até chegar o mais próximo possível de um conceito de compreensão, apropriação. Acabou encontrando um lugar para falar sobre música, cinema e literatura.

E foi assim que começou.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Ódio


Odeio. Assim, simples, no presente do indicativo. Mas não odeio de um jeito nobre, como aquilo que chamamos de ódio construtivo, que geralmente acompanha uma bofetada da vida, do sofrimento, e nos faz reagir. O ódio com saldo positivo, se é que pode haver algo assim. O meu ódio acontece em estado bruto, duro e frio como uma rocha, cristalizado, empedernido. Ódio cego. Camadas e camadas acumuladas, como que guardando fósseis no ponto mais profundo e mais escondido da terra que há em mim. Não tenho a menor pretensão de pertencer ao grupo dos que odeiam em segredo, civilizadamente, ou dos usam o ódio como um foguete propulsor. Não, nada disso. Sou humana, vil, mesquinha e sofro. Sofro muito com as dores que me cabem e com as que me imponho. Xingo, grito, acho injusto e choro. E, é claro, odeio com todas as forças, como deve ser, sem objetivo, sem buscar a cura.


É claro que minha vida não se resume a isso, mas, no momento, mudar o foco da conversa para coisas agradáveis seria mais ou menos como depositar flores mortas sobre a carne viva. Completamente sem propósito. Não há motivo para misturar as coisas. Tudo em seu lugar e a seu tempo.


E sinto ódio quando acordo e me dou conta de que sei desde sempre que o fim do caminho é a morte. Que já se passou a metade da minha vida e que nunca serei a mulher que visita as pirâmides, que se aventura, que domina cinco idiomas, que conhece a poesia e a prosa do mundo. Jamais dançarei bem como gostaria. Nunca darei a volta ao mundo, ou mesmo farei um cruzeiro num grande veleiro branco. Nunca terei amantes misteriosos, não escreverei livros de sucesso, não aprenderei a tocar piano, não criarei cavalos, não morarei numa grande casa com sombra de árvores fartas e convidativas no jardim. Não passarei tardes olhando para o mar da Grécia. Não terei os músculos da Madonna. Não pintarei telas em azul e ocre. Não conhecerei a glória de me apaixonar mais dez vezes, não nadarei com golfinhos, não serei a luz da vida e a razão dos dias de mais ninguém, não arrebatarei de nenhuma outra o homem que tanto amo. Minha existência é comum e será assim até o final. É o meu papel, o que me coube na comédia.


Em dias assim é inútil querer encontrar o lado bom de qualquer coisa. Certamente estará chovendo, e o melhor é espiar pela janela com um olhar vazio, tomar um chá quente e voltar para a cama. Em dias de ódio cego, bruto e visceral, é de bom tom poupar o mundo da nossa constrangedora presença.