segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Dando a cara pra bater


Volta e meia, me aventuro. Quase sempre me dou mal, tomo tombo, me arrebento. Mas sempre tento, e sempre mais, e sempre muito. Por isso escrevo. Eu, contista, me aventurei pelo mundo dos textos maiores. Saiu um romance. Atende pelo nome de NÓS SEM VOCÊ. Publico aqui o primeiro capítulo apresentando o personagem ELA, prova da minha falta total de senso de preservação. Como diria uma amiga, "pular no abismo feito uma vaca kamikaze"... Segue o texto, logo abaixo.

...


SOBRE ELA - I

Não sei como defini-la, descrevê-la. Nem preciso. Minha função aqui é outra. Sou o narrador, o escriba. Só relato fatos. Não sou a voz de ninguém. Apenas testemunhei como quem assiste a um filme banal numa madrugada insone. Mesmo assim, acho que vale contar. É uma espécie de histórico, de diário. Aconteceu com ela. Poderia ter acontecido com você.

Ela vive como todos, não vou situar nem tempo, nem espaço. Pense o que quiser. Imagine. É um lugar qualquer do planeta, um lugar em que qualquer um de nós poderia estar. Simples assim. Leva a vida, faz o que faz, o que gosta, o que precisa. Trabalho, família, amigos, essas coisas. Tem vontades secretas que sublimou, vontades novas que brotam sem aviso, realiza pequenos desejos, esquece de outros tantos. Ouve música aos quilos, lê às toneladas, vê mais filmes do que a população total de algumas cidades pequenas, mas não gosta dessa coisa esnobe de falar só sobre cultura. Odeia gente assim. O pessoal “papo cabeça” em tempo integral. “Tem hora pra tudo” - costuma pensar - embora não tolere manifestações explícitas de burrice crônica. Adora falar bobagens, rir das bobagens que ouve. É dona de um humor rascante, beirando o sarcasmo. Não é qualquer um que percebe onde termina a piada, onde começa o insulto. Limite sutil que ela cruza sempre que pode, ou quando não percebe. Por isso faz amigos com a mesma facilidade com que coleciona inimigos. Chamarei de antipatias, que soa menos dramático (mesmo que ela afirme que seres do gênero feminino possuam grande vocação para o drama, assim como as drag queens).

Não acredita em morte natural. Segundo ela, pessoas vão se envenenando aos poucos. Não com remédios, poluição, péssimos hábitos, comida industrial, doenças, metais pesados, agrotóxicos, drogas, álcool e cigarros, mas delas mesmas. Vão envenenando umas às outras até o limite do suportável e, então, simplesmente morrem. Logo, ninguém, em tempo nenhum, morreu, morre ou morrerá de forma natural. Todos assassinam uns aos outros. É o que ela acha.

Gostaria de encontrar alguma coisa. Não sabe o quê. Talvez um prato fundo, bem cheio de uma substância qualquer que mate todas as suas fomes constantes. Que fomes são? Pergunte a ela, se um dia puder. Eu não sei. Eventualmente faz como um personagem de Virginia Woolf: mantém os olhos abertos para preencher cérebro ao limite máximo. O mais próximo que consegue chegar da saciedade, da sensação de plenitude. Fugaz! Dura apenas alguns segundos.

Depois de muito pensar sobre o que tinha feito da vida, resolveu mudar o rumo da estrada. Pega um desvio. Quer literatura. Quer multiplicar, trocar, falar sobre autores, citações, biografias. Precisa de interlocutores, de desafios, de personagens. Quer que a questionem, que a instiguem, que a ameaça chegue perto, uma lâmina rápida passando à distância de um fio de cabelo. De que vale conversar com gente que só concorda? Duvida um pouco que a humanidade, no estado em que se encontra, possa fornecer esse tipo de indivíduo. Mesmo assim nutre esperanças. Quem sabe?

É tarefa complexa entender suas preferências literárias ou musicais. Trata-se de um ser mutante, moldável, mas não propriamente adaptável. Precisa ser convencida. Prefere observar os ambientes e absorver por osmose somente o que interessa. Caso contrário, a guinada precisa ser radical, o impacto grande, para sacudi-la, arrancá-la do marasmo. Depois da queda, o coice! Se não for assim, desaba no buraco escuro e cinza do tédio, e ali se acomoda, permanece.

Não é resistente à tecnologia. Mas não morre de paixão por computadores, mensagens eletrônicas e parafernálias em geral, embora não viva sem algo que produza som em cada ambiente da casa, um celular (mais para mensagens do que para conversas), e um bom forno de microondas. Ama a música e, portanto, ama CDs e outras mídias. Telas, teclas e botões são mortos para ela. Chatice necessária. Por força do ofício usa computadores diariamente, por muitas e muitas horas. Possui o ímpeto dos descobridores, o que a faz uma mulher curiosa, aprendiz eterna. Por isso conectou-se ao mundo pelos milhões de artifícios internéticos, links, blogs, espaços virtuais, e-mails, outlooks. Essa porcaria toda. Usa tudo como os índios americanos fariam com sinais de fumaça, ou a resistência francesa com os pombos-correio.

É uma necessidade vital para esta mulher estar ligada aos amigos. Por conta disso entrou, meio contra a vontade, em um desses nichos, tipo clube virtual. A curiosidade matou o gato! Um impulso a leva a fuçar em tudo, vasculhar até chegar o mais próximo possível de um conceito de compreensão, apropriação. Acabou encontrando um lugar para falar sobre música, cinema e literatura.

E foi assim que começou.

8 comentários:

Damião Francisco Boucher disse...

"Ela", extremamente humana, previsível e imprevisível ao mesmo tempo com gostos e desgostos, sonhos e objetivos tolerante e intolerante. Só que tudo isso é mostrado de uma ótica jamais pensada ou pelo menos exposta antes. Penso que “ela será um romance muito intrigante não só por se tratar da análise do ser humano, mas sim pelas estruturas literárias que às vezes desrespeitas a normalidade mórbida dos textos. Acredito que será uma obra consideravelmente respeitada e digna de uma poltrona confortável seguida de um bom leite quente com chocolate e muita expectativa.

D.F. Boucher

Paulo Mota disse...

Estava pensando... Pelo menos metade desta "ela" pode ser você.

Paulo Mota disse...

Ou melhor: 70%.

Denise Ravizzoni disse...

Paulo, bem que eu gostaria de ser 70% dessa Ela, mas acho que não sou...

fab disse...

EU li, em primeira mão. Há-há.

Rodrigo Souza disse...

Green Day em prosa. Se quiser roubo um tijolo pra você.

Denise Ravizzoni disse...

eh eh

Anônimo disse...

tava lendo uns topicos da comunidade de poe e encontrei o seu blog adorei a sua literatura!
=D