quinta-feira, 8 de abril de 2010

HOJE NÃO

Quase sempre escrevo sobre pessoas desajustadas, sobre crimes, sobre vítimas. Quase sempre sobre alguma cabeça levemente (ou muito) perturbada, um criminoso sádico, algum desorientado ocasional, uma assassina descontrolada beirando o colapso total e a falta de razão. Hoje não. Nada de sangue, mortos, correntes, venenos, instrumentos de tortura, cordas, algemas ... nada. Por hora, só me sento aqui, olho o mar imenso, a praia quase vazia e tento entender.

Tento, sim. Nada garante que consiga. Procuro lembrar os motivos, as razões, as molas propulsoras da vontade comum de todos os dias. Como aquelas listas imbecis do tipo ‘cite dez ótimas razões para estar vivo’. Tudo tão obtuso, tão intrincado, tão pouco claro. E eu ali, sentada, olhando. Sou aquele grãozinho de porra nenhuma procurando com desespero os botões que ligam a porcaria toda e fazem girar engrenagens que nem sei se existem. O sol começa a esquentar nos ombros, o que me obriga a tirar os olhos do umbigo do universo e me perguntar o que eu, ruiva, branquela e sardenta, faço ali exposta àquele maldito calor em pleno fulgor tropical das três da tarde.
Deveria estar lá com meus escritos, meus crimes e vítimas, no cantinho fresco e protegido em que escolhi para colocar minhas tralhas de escrever. A tranquilidade da paisagem vista pela janela, o ar fresco do quarto, o tranquilizador bater de teclas, a luz da tela do computador, as pilhas de livros. Mas não estou lá. Estou aqui, ao sol, querendo uma água gelada, um suco qualquer, e constatando pela milésima vez que não sou do tipo padrão de aventureiros, dos que escalam uma montanha para meditar a respeito do enigma da vida contemplando a paisagem solitária depois de passar por não sei quantas situações desconfortáveis. Não, eu não.
De repente, um movimento no mar captura minha atenção, e eu sorrio. A coisa toda acontece como uma cena de filme e eu lembro. Sei o significado dos enigmas, o sentido de cada pequena coisa que existe, desvendo as razões que levam pessoas a acordar todos os dias e tocar a vida, e sorrir, e chorar, e tudo o mais que há no pacote completo.
Lá do ponto que chamou minha atenção, de dentro da água verdinha, emerge um rapazinho moreno, bonito, que vem caminhando em minha direção carregando uma prancha amarela. Tem aquele sorriso de quem usa aparelho nos dentes mas parece não precisar. O sol cria um reflexo leve que amplia por um segundo o efeito metálico. Chega bem perto e diz:
- Mãe, viu a onda que peguei? Fotografou essa? Foi pra você!!!
Então, a Terra gira, o mar faz um som bonito, o vento sopra leve e carrega o calor para a longe e tudo, tudo faz sentido.

2 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Pura intensidade, denso, cativa-me suas palavras e conceito neste blog.

Estou te lendo, aos poucos, mas meu corpo pede mais e mais textos.

Li o seu "crime sexualizado" hoje, cada texto e tudo me atrai lá! te enviei um email agorinha, veja lá.

te sigo!

Michael V. disse...

Muito legal.
Parabéns!