quarta-feira, 4 de março de 2009

Sobre sim e não

Sorriu meio sem graça, sem saber que tinha uma mancha de batom no dente, daquelas que deixam qualquer sorriso impecável com um jeito meio suburbano de ser. Tinha ficado na fila do cinema por mais de meia hora. Era, no mínimo, desconcertante chegar ao guichê e ouvir que a sessão estava lotada. Foi então que surgiu o homem dizendo que a amiga que estava esperando não apareceu e, gentilmente, ofereceu o ingresso que tinha disponível. E ela retribuiu com um sorriso manchado de batom. Só depois descobriu a mancha quando foi ao banheiro, antes de comprar as pipocas. Isso era um sinal que ela deveria ter levado a sério. A mancha carmim no dente branco. Não é o tipo de coisa que se deva ignorar. Mas Isabel não ligou. Tomou seu lugar ao lado do moço e ficou lá até o final. Ele cheirava bem e a presença era agradável. Quando a luz acendeu novamente, conversaram um pouco sobre o filme (o diretor era anglo-indiano, a nova sensação dos cinéfilos). Ele disse que gostaria de vê-la outra vez. Ela disse que tudo bem. Trocaram telefones e cada um tomou seu rumo.
Matheus (o nome dele era Matheus e ela ficou feliz - achava que combinava com Isabel) era alto, usava óculos e tinha um rosto que ela definiu como suplicante. Um daqueles homens que não suportaria assistir a um filme sozinho num cinema lotado. Talvez por isso tivesse tomado conhecimento do seu pequeno drama na bilheteria e se apressasse em oferecer o ingresso. Ela se odiou quando descobriu que retribuiu a gentileza com um sorriso imperfeito, porque ele era bonito, charmoso e gentil. E Matheus tinha força, mas não parecia forte. E ela não gostava de medir forças. Gostava de ombro no ombro. Então, Matheus lhe parecera bom. E ele gostou da moça que ficou vermelha de leve (era mais para rosa), mas mantinha uma atitude de ataque, mesmo parecendo totalmente confusa diante do “não" da funcionária do guichê. Ela parecia não saber aceitar uma negativa, e ele achou isso bom. Para Matheus, Isabel pareceu uma corda tensa, esticada, mas não a ponto de se romper. Agradeceu em segredo a falta de consideração da amiga que não apareceu ao programa combinado.
Ela demorou mais ou menos uma semana para ligar (sim, a iniciativa foi dela). Em uma noite meio morna, lia Simone de Beauvoir (“morar apenas na minha pele enquanto o mundo é tão vasto”). Lembrou de Matheus de repente. Achou que devia falar com ele. Ele pareceu feliz em falar com ela. Conversaram um pouco e combinaram um jantar na noite seguinte. Ela iria encontrá-lo no restaurante (não, não precisava vir buscá-la). No fundo, não queria ainda entregar uma parte da sua história para Matheus, não queria revelar onde morava, como era sua casa, os objetos que tinha na sala. Ainda não. Continuou lendo até que a aranha do sono veio tecer sua teia.
No dia seguinte, procurou não pensar muito no encontro (deixaria as coisas fluírem). Mas, quando menos esperava, surpreendia os pensamentos fugindo na direção de Matheus. Será que gostava de ler? Provavelmente sim, já que tinha dado umas pistas no pouco que conversaram. Que tipo de música ouvia? Ela não iria suportar se ele gostasse de country e sertanejo. Se ele aparecesse ao encontro de jeans, camisa xadrez por dentro da calça, cinto de fivelão e botas ela seria capaz de morrer, de cair ali mesmo, dura e fulminada. E se fosse daquelas criaturas fanáticas por futebol, que acampa no sofá domingo à tarde com um monte de pacotes de salgadinhos fedorentos e uma dúzia de latas de cerveja para provocar sonoros arrotos? E se fizesse aulas de dança de salão? E se tivesse amigos insuportáveis, daqueles que não conseguem fazer nada se não for de modo coletivo e barulhento e não admitem novos membros na confraria? E se ele tiver uma mãe chata e grudenta, daquelas que querem ensinar receitas e como é que o filho gosta que dobrem suas meias e cuecas? E se sofresse de síndrome de comparação, insistisse em traçar um parâmetro infinito entre ela e a ex-namorada (e ela, claro, sempre estaria em desvantagem)? E se tivesse manias insuportáveis, tipo enfiar o dedo no nariz e ficar cutucando lá dentro cada vez que parasse num sinal de trânsito, e depois ainda grudasse meleca no volante? E se fosse compulsivo sexual e a traísse com qualquer baranga? E se fosse viciado em bate-papo na internet (coisa que ela não suportava)? E se tivesse hemorróidas e chulé? E se fosse um ciumento desequilibrado paranóico que implica até com a roupa que a gente usa, reclama do tamanho do biquíni e suspeita de tudo? E se...
E assim as horas iam passando. O momento do encontro ficava cada vez mais perto. No final da tarde, Isabel se sentia meio tonta, meio nauseada, como se estivesse num passeio de barco. O estômago se contorcia, as palmas das mãos suavam. Não estava doente. Estava paralisada de medo. Os muitos “ses” levantados durante o dia a fizeram gelar. Tinha ficado engessada numa roupa de pânico, projetando todos os passos futuros (saídas, namoro, paixão, brigas, convivência, possíveis traições, etc.). Não pensava mais na roupa que iria usar. Pensar em como se desculpar por não poder comparecer. Liquidou o assunto com um telefonema frio, dizendo simplesmente que tinha mudado de idéia e assumido outro compromisso. Tudo bem se Matheus pensasse que era louca. Isso não vinha ao caso. O que importava era que tinha se poupado de toda a dor. Não quis assumir o risco. Preferiu antecipar qualquer sofrimento. Não se dava conta que também tinha se poupado da vida. E nem pensou mais no que foi sem nunca ter sido.

7 comentários:

Sheyla Amaral disse...

As malditas escolhas. Será que sim, será que não, estamos sempre escolhendo e desistindo de algo. Gostei do texto, como sempre.

Beto Canales disse...

AI ai ai

Miozete disse...

Que bela lista de coisas odiosas em um homem!

E agora José? disse...

Eu adoro esses textos curtos, inteligentes e adoravelmente trágicos. Continuo seu admirador e sempre quando posso, acompanho as flores mortas sobre a carne viva.

Luiz Gonzaga B. Jr. disse...

Lembrei de um livro sobre estratégia no xadre, que lí certa vez. Dizia que um plano ruim é bem melhor que plano nenhum. A moça escolheu plano nenhum.

Denise Ravizzoni disse...

Verdade, Luiz... plano nenhum... o vácuo.

Carlos Patrício disse...

Esse "e se...?" é que mata!

Adorei o texto, D.
Um dos melhores da safra, que está fantástica.