segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Capricórnio com Ascendente em Câncer


Algumas coisas me arrependo de ter dito. Outras, me arrependo de não ter feito. Acho que a vida é assim. Estou aqui, no táxi amarelo, e entre um e outro pensamento que foge pela janela junto com a paisagem – passa, passa, tudo passa - abro a bolsa de grife com um monte de coisas dentro. Encontro o que preciso para retocar o batom com aquela postura de quem tem controle. Aprendi faz tempo a aparentar controle. Não significa que tenho. Não mesmo. Lembro-me do filme que vi. Acho que era Tomates Verdes Fritos. A personagem, gorda, triste e patética, diz que é tarde demais para ser jovem e cedo demais para ser velha. Acho que era mais ou menos assim. Pode não ser. Mas entendo.

Enquanto o carro segue, sonho em ser assim, desconhecida, inconstante, não precisar parecer, não precisar não-ser. Inventar a própria personagem todos os dias é uma carga pesada. Até para mim, que carrego milhões de pequenas coisas nessa bolsa.

Na avenida grande, enquanto o táxi segue, vou repassando as minhas diversas mulheres, uma espécie de catálogo esquizofrênico de “eus” interiores, como quem deixa correr um fio da meia de nylon. Em minha sala de não-estar estão os objetos que tanto prezo. Arte, dizem os amigos. Gosto de arte sim. Sou moderna. E gostar de arte é culto. Quase necessário. O que diriam, afinal, os que me conhecem e os que me criticam? Mas uma daquelas que me habita gosta também de gravuras baratas com as figuras de Jesus e Maria com o coração em sangue, ou daquela menininha "kitsch" com cachos dourados segurando flores de plástico. Essa mulher estranha nutre predileção por bonequinhas de porcelana e jarras em formato de abacaxi, cabelos amarelos de descolorante, unhas e lábios bem vermelhos. O gosto é dela e não está em discussão. Susto. O táxi faz uma curva que acorda. Acorda? Mas não era sonho. Nem delírio.

A buzina me chama para o mundo do aqui e agora. Indo, indo, indo. E eu vou. Como no ano passado, como em tantos outros. A mesa estará posta, as crianças mais crescidas. Como você está bem! Não mudou nada! Mudamos. Todos mudamos. Mais amargos, mais felizes, mais velhos, mais prósperos, menos pacientes. Haverá a discussão por quem corta o peru, as piadinhas de sempre. Os risos, também de sempre. As animosidades corriqueiras. E eu indo. Me deixando levar como as algas mortas nas ondas. Se a imagem invocasse uma ostra, pelo menos poderia me grudar a algum rochedo ocasional. Não seguir em frente. Parar. Mas alga não adere a nada. Acompanha o movimento. Só vai.

A avenida se bifurca. O táxi, agora, contorna o parque em direção ao túnel. Minha cabeça também está assim. Eu me bifurco e entro no túnel. A luz aparece longe ainda. Quando o carro vence o túnel, a frase sai de uma boca que não parece articular nada:

Pára um pouco que eu vou descer.

Ar. Muito ar. Respiro muito. Fundo. Embora seja dezembro tropical, o ar é fresco. Desenha um caminho das narinas aos pulmões. Pensamentos mais claros. Observo a paisagem. Rimbaud escreveu que a eternidade é o mar encontrando o céu. Algo assim. Eu concordo. Com a alma encharcada de uma esperança pífia entro de novo no táxi.

- Segue.

A ordem é seca. A voz tem um pouco de angústia. Um fundo molhado. Meus olhos também. O motorista não sorri. Eu não sorrio. Sigo.

Táxi não é lugar para crise existencial em véspera de festa anual do clã familiar. Que coisa mais sem glamour. Não tenho tempo agora para filme que passa na cabeça expondo as claustrofobias que moram em mim e nas minhas muitas personagens. As misérias e glórias das muitas que me habitam. A mim e a tantas outras. Brigam por espaço, se acotovelando, querendo emergir. Nunca chegam a um acordo. Nunca sou plena. Sou muitas. É sina. Vou continuar sendo. O amigo astrólogo, conhecedor da alma humana, jornalista e escritor sazonal diz que a culpa é do mapa astral. Sabe como é: capricórnio com ascendente em câncer. Antagonistas. Um contrapõe o outro. Um completa o outro.

Seja lá como for, dou uma ajeitada nos cabelos curtos. Confiro o rosto no espelho. Nenhum sinal de dúvida. Nada me desfigura. Impassível. Egípcia. Pago a corrida de táxi. O motorista rumina um agradecimento. Eu desembarco. Aliso a roupa. Respiro mais uma vez a brisa fresca e me dirijo calma, segura, para a entrada do prédio e para a festa que me espera. Ano que vem não. Mas agora vou. Sorrio e vou.



sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Iluminura



Ele me sabe. Me conhece. Me decifra. Sabe que pode andar entre tudo o que há de mais incerto em mim. Sabe dos meus dias de espera, das minhas noites insones. Sabe que meu amor é feito de fogo e incenso, que arde, mas não destrói. Sabe que tenho inúmeras portas trancadas, mas tem a chave para abrir a cada uma delas.
Me conhece porque vê além dos meus olhos; vê com meus olhos. Percebe que cada gesto significa um outro gesto, guarda ou revela, mostra ou insinua. Conhece o real sentido dos meus sentidos. Conhece as pequenas e grandes reações que cada toque seu, cada palavra sua podem desencadear. Passeia soberano pelos abismos e pelas planícies de mim. Abre minhas janelas para que entre a luz.
Me decifra porque me lê com o cuidado de um arqueólogo que dedica a vida a compreender os sinais que encontra na cidade perdida que sempre procurou. Me lê como a um livro revelador, buscando suas respostas em cada pequeno traço deixado no papel em que me imprimo. Porque possui todos os códigos que me acessam.
Me sabe porque sabe a si mesmo. Porque sou como ele. Porque sou ele. Porque somos nós.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Fada dos Dentes


Eles estão lá enfileirados. Todos um ao lado do outro. Na luz da web, aquela configuração ameaça, chega a causar incômodo. Não que provoquem náusea ou coisa parecida. Bem pelo contrário. São de um brilho estranho, um formato único, que seduz e amedronta, tão estranhos que me fazem perguntar por que caralho, afinal de contas, não são todos assim.

E eu, olhando as formas brilhando na lente, esqueço que tudo tem uma moldura. Em volta daqueles dentes há toda uma pessoa, uma boca que beija e fala comigo, uma cabeça que pensa, cabelos, mãos (de que gosto especialmente), um cérebro, e todos os acessórios que costumam vir no pacote dos seres humanos completos.

Vira uma espécie de obsessão instantânea. Quero aquela pessoa. Quero aquele sorriso. Quero a língua em mim, e a boca que a contém. Quero a imagem dos dentes, um frame perfeito congelado no tempo. Alguma coisa que eu possa guardar para sempre. Nunca vi nada tão lindo!

E não falo dessa beleza de revista, de expor as carnes como num açougue para ver qual peça de picanha ou filé nos aguça o paladar. Falo daquela beleza subjetiva, de uma espécie de revelação que acontece, mas que a gente não consegue explicar, dimensionar, sei lá.

Fico imaginando um jeito de capturar esses dentes. Arrancar um a um como fez o louco do conto de Poe com a pobre Berenice? Nem pensar! Trágico demais. Pedir para tirar um molde e confeccionar um modelo em gesso, um souvenir? Frio demais. Não me deixaria feliz.

Então, para ter os dentes, só há uma maneira viável. É preciso que todo o resto acompanhe o conjunto de pedaços brancos que me fascinam. Isso implica ter a boca, os olhos, os cabelos, o pau, os pés, e eu não quero. Mas agora, aqui, em total quietude na noite escura, só quero que crave os dentes com calma, fundo, em meu pescoço. Só quero os dentes, os dentes, os dentes.