
Algumas coisas me arrependo de ter dito. Outras, me arrependo de não ter feito. Acho que a vida é assim. Estou aqui, no táxi amarelo, e entre um e outro pensamento que foge pela janela junto com a paisagem – passa, passa, tudo passa - abro a bolsa de grife com um monte de coisas dentro. Encontro o que preciso para retocar o batom com aquela postura de quem tem controle. Aprendi faz tempo a aparentar controle. Não significa que tenho. Não mesmo. Lembro-me do filme que vi. Acho que era Tomates Verdes Fritos. A personagem, gorda, triste e patética, diz que é tarde demais para ser jovem e cedo demais para ser velha. Acho que era mais ou menos assim. Pode não ser. Mas entendo.
Enquanto o carro segue, sonho em ser assim, desconhecida, inconstante, não precisar parecer, não precisar não-ser. Inventar a própria personagem todos os dias é uma carga pesada. Até para mim, que carrego milhões de pequenas coisas nessa bolsa.
Na avenida grande, enquanto o táxi segue, vou repassando as minhas diversas mulheres, uma espécie de catálogo esquizofrênico de “eus” interiores, como quem deixa correr um fio da meia de nylon. Em minha sala de não-estar estão os objetos que tanto prezo. Arte, dizem os amigos. Gosto de arte sim. Sou moderna. E gostar de arte é culto. Quase necessário. O que diriam, afinal, os que me conhecem e os que me criticam? Mas uma daquelas que me habita gosta também de gravuras baratas com as figuras de Jesus e Maria com o coração em sangue, ou daquela menininha "kitsch" com cachos dourados segurando flores de plástico. Essa mulher estranha nutre predileção por bonequinhas de porcelana e jarras em formato de abacaxi, cabelos amarelos de descolorante, unhas e lábios bem vermelhos. O gosto é dela e não está
A buzina me chama para o mundo do aqui e agora. Indo, indo, indo. E eu vou. Como no ano passado, como em tantos outros. A mesa estará posta, as crianças mais crescidas. Como você está bem! Não mudou nada! Mudamos. Todos mudamos. Mais amargos, mais felizes, mais velhos, mais prósperos, menos pacientes. Haverá a discussão por quem corta o peru, as piadinhas de sempre. Os risos, também de sempre. As animosidades corriqueiras. E eu indo. Me deixando levar como as algas mortas nas ondas. Se a imagem invocasse uma ostra, pelo menos poderia me grudar a algum rochedo ocasional. Não seguir
A avenida se bifurca. O táxi, agora, contorna o parque em direção ao túnel. Minha cabeça também está assim. Eu me bifurco e entro no túnel. A luz aparece longe ainda. Quando o carro vence o túnel, a frase sai de uma boca que não parece articular nada:
Pára um pouco que eu vou descer.
Ar. Muito ar. Respiro muito. Fundo. Embora seja dezembro tropical, o ar é fresco. Desenha um caminho das narinas aos pulmões. Pensamentos mais claros. Observo a paisagem. Rimbaud escreveu que a eternidade é o mar encontrando o céu. Algo assim. Eu concordo. Com a alma encharcada de uma esperança pífia entro de novo no táxi.
- Segue.
A ordem é seca. A voz tem um pouco de angústia. Um fundo molhado. Meus olhos também. O motorista não sorri. Eu não sorrio. Sigo.
Táxi não é lugar para crise existencial em véspera de festa anual do clã familiar. Que coisa mais sem glamour. Não tenho tempo agora para filme que passa na cabeça expondo as claustrofobias que moram em mim e nas minhas muitas personagens. As misérias e glórias das muitas que me habitam. A mim e a tantas outras. Brigam por espaço, se acotovelando, querendo emergir. Nunca chegam a um acordo. Nunca sou plena. Sou muitas. É sina. Vou continuar sendo. O amigo astrólogo, conhecedor da alma humana, jornalista e escritor sazonal diz que a culpa é do mapa astral. Sabe como é: capricórnio com ascendente
Seja lá como for, dou uma ajeitada nos cabelos curtos. Confiro o rosto no espelho. Nenhum sinal de dúvida. Nada me desfigura. Impassível. Egípcia. Pago a corrida de táxi. O motorista rumina um agradecimento. Eu desembarco. Aliso a roupa. Respiro mais uma vez a brisa fresca e me dirijo calma, segura, para a entrada do prédio e para a festa que me espera. Ano que vem não. Mas agora vou. Sorrio e vou.